domingo, 12 de abril de 2020

A Teoria do Óbvio


Em tempos de politização de tudo, alguns cuidados básicos acabam sendo necessários ao postar dados ou opiniões nas redes sociais, especialmente quando essas informações tiverem o potencial de contrariar crenças necessárias à manutenção das teogonias que se contrapõem na internet. Lembre-se de que qualquer fato contradiz alguma crença, inclusive esta.

Assim, além de explicitar com todas as letras o que você deseja enfatizar com as informações que apresenta, é necessário abrir a postagem com o óbvio do óbvio do óbvio. Isso porque, a partir da sua informação, muitas pessoas farão as contas óbvias e terão os insights óbvios, e poderão acusar sua postagem de omitir o óbvio. Então, por mais que você queira ir diretamente ao ponto, não queime etapas: explique os primórdios do raciocínio, ainda que estes lhe pareçam evidentes. Isso minimizará o "fogo amigo" e reduzirá o trabalho de ter que explicar a muitas pessoas que, para poderem contestar ou contribuir com o raciocínio explicitado, primeiro elas deveriam ler o post.

Portanto, a abertura do seu post deverá conter algo como: 
“AVISO: não defendo o Lula, não defendo o Bolsonaro, não sou comunista, não sou plutocrata, sou republicano e democrata e não faço apologia a ditaduras, sejam de "esquerda" ou de "direita"; sou antipopulista; não referendo HCQ, mas acho que as pessoas podem se agarrar a qualquer esperança que não as mate; sei do problema de quem não está trabalhando, porque meus clientes, meu patrão e eu também não estamos; não torço contra o Brasil; quero que todos sobrevivamos à pandemia; não sou médico nem cientista, mas sei ler um gráfico; o que estou apresentando são fatos, os dados são os oficiais, e a análise que faço dos fatos visa evidenciar o elemento x, com o objetivo de abrir um debate científico dentro de parâmetros de civilidade, que a corrobore ou que a corrija; o raciocínio contido nesta postagem partiu do elemento n, confrontado com o problema z, levando à conclusão y, que é referendada pelos elementos j, k e g, conforme atesta a literatura h, disponível na obra m, do autor f, que tem a formação t e é especialista no assunto w”. 

Ademais, há conceitos que muitas pessoas não conseguem alcançar, mas que usam sem cerimônia, como "comunismo”, "direita", "esquerda", "hipocrisia", "democracia" ou "reacionário"; e outros que passam despercebidos, como "populismo", "República", "método científico", "extremismo", "despreparo", "freios e contrapesos", "integridade", "honestidade" etc., que, por mais óbvios que lhe possam parecer, será necessário explicar a priori.

Por outro lado, se você fizer um disclaimer desses todas as vezes em que publicar alguma coisa na rede, as suas postagens se transformarão num campo de batalha, uma vez que você terá agredido simultaneamente a todas as crenças das quais muitas pessoas, encampadas nisso ou naquilo, dependem para por um mínimo de ordem na sua cosmogonia particular.

A conclusão a que se chega é a de que, por mais clara que sua publicação possa lhe parecer, será impossível evitar que torcedores disso ou daquilo entrem no seu post bradando palavras de ordem (atualmente chamadas de “hashtags”), na esperança de que seus gritos modifiquem os fatos. Assim, se você tem informações produzidas a partir da análise responsável de dados rastreáveis, publique-as de peito aberto e prepare-se para o óbvio: num país onde os livros são considerados um amontoado de muita coisa escrita, sempre aparecerá no seu post alguém disposto a incendiá-los.


Nenhum comentário: