segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A mulher de César

Reuniram-se nos dias 10, 11 e 12 de novembro de 2010,  no resort do Hotel Transamérica da Ilha de Comandatuba, na Bahia, juízes federais de todo o Brasil e suas famílias, em evento organizado pela AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil). O encontro foi patrocinado por várias empresas privadas e estatais e por um instituto de ética concorrencial (clique aqui para ver a reportagem na Folha).

Questionada quanto a aspectos éticos relacionados à aceitação desses patrocínios, a Associação defendeu-se com esta pérola: 

"A Ajufe informa que 'em todas as oportunidades anteriores adotou o mesmo modelo de encontro, concentrando os seus esforços de organização para proporcionar o debate de temas importantes para o Poder Judiciário e para a sociedade brasileira'".

Ocorre que, diante do lamentável espetáculo protagonizado por membros do STJ em cadeia nacional durante dois recentes julgamentos envolvendo políticos ficha-suja, é inevitável indagar até que ponto aquilo que interessa à sociedade brasileira tem importância para o Poder Judiciário. Nesse caso dos patrocínios, tudo indica que a magistratura afastou-se de tal forma da sociedade que parece já não enxergar o significado da expressão "conflito de interesses". Como resultado, todo o sistema jurídico do país vive hoje o drama de Pompéia, mulher de César -- tendo como agravante o fato de terem-se demonstrado procedentes muitas das acusações de improbidade feitas ultimamente contra juízes.

O efetivo controle sobre o serviço público é uma meta a ser intransigentemente perseguida pelo contribuinte. A Administração Pública chega a aplicar na folha de pagamento quase 80% do que arrecada (vide os números do Distrito Federal). O que sobra é insuficiente para que os serviços prestados ao cidadão sejam minimamente satisfatórios, mesmo porque boa parte desse saldo é mal administrada, desperdiçada e até desviada para cofres particulares, graças ao diuturno assalto ao Erário promovido por empresários destituídos de qualquer freio, auxiliados por servidores dóceis.

O que motivaria entidades como a Souza Cruz, o Sindicato das Distribuidoras de Combustíveis, a Caixa, o Banco do Brasil e a Eletrobrás, entre outros que preferem ficar anônimos, a patrocinar um evento luxuoso para juízes federais e suas famílias em uma ilha paradisíaca, se não a possível docilidade de algum magistrado?

A indagação é retórica, em especial diante das surradíssimas declarações da AJUFE e das eventuais justificativas desse Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), um dos patrocinadores do encontro e, talvez, o seu melhor símbolo.

Combustão total

Um artigo de Guilherme Genestreti na "Folha Online" de hoje trata de um transtorno relacionado ao trabalho, ao qual deu-se o nome de "burn out" (combustão total, em inglês). 

O fenômeno é objeto de pesquisa pela ISMA (International Stress Management Association), definida em seu website como "a mais antiga e respeitada associação internacional sem fins lucrativos voltada à pesquisa e ao desenvolvimento da prevenção e do tratamento do stress no mundo".

Marilda Lipp, do Centro Psicológico de Controle do Stress e professora de psicologia da PUC-Campinas, citada no artigo, assim descreve o transtorno: "É a doença dos idealistas. O 'burn out' é um desalento profundo, ataca pessoas dedicadas demais ao trabalho, que descobrem que nada daquilo pelo que se dedicaram valeu a pena."

A professora alerta que a apatia gerada pelo "burn out" pode sugerir depressão ou síndrome do pânico, dificultando o diagnóstico. O transtorno também não deve ser confundido com estresse: "O estresse tem um componente biológico forte, ligado a situações em que o corpo tem de responder ao perigo. Já o 'burn out' é um estado emocional em que a pessoa não sente mais vontade de produzir. Quem apresenta exaustão emocional, não se envolve mais com o que faz e reduz as ambições pode estar sofrendo do transtorno."

O "burn out" não é uma coisa de mariquinhas. Muita gente raçuda, valente e perfeccionista conheceu momentos kafkianos em que considerou que o trabalho mereceu de si um nível de atenção incompatível com os reflexos desse esforço em sua vida pessoal. O transtorno parece vitimar justamente os que nunca dizem não a um desafio e que não se contentam com resultados meramente satisfatórios.

Ainda segundo o artigo da Folha, Marilda Lipp diz que, além de psicoterapia e antidepressivos, recomendados para minimizar os sintomas, o tratamento deve incluir uma reavaliação do papel do trabalho na vida da pessoa: "aprender a dizer não quando não tem condições de executar algo e reconhecer o próprio valor, mesmo que outros não o façam."

Problemático mesmo é convencer os "burnt out" a fazer isso. Comentei o artigo com um amigo que se define como "ex-workaholic" e que se encontra atualmente em uma fase difícil da carreira. A reação do sujeito foi: "ainda bem. Pensei que eu tivesse ficado preguiçoso".

sábado, 6 de novembro de 2010

Os excluídos

Parece que, afinal, prevaleceu a opinião pública de que lugar de ficha-suja é fora das eleições -- pelo menos numa boa maioria dos casos. Os TREs e o TSE entenderam que a lei aplica-se imediatamente; e o STJ acabou ratificando esse entendimento.

Claro que a ratificação da lei pelo STJ foi difícil. Metade dos ministros acredita, ou parece acreditar, que o estrito respeito à Constituição assegura o bem-estar social e a manutenção do estado de direito. Isso talvez seja verdadeiro em lugares como a Inglaterra ou a Noruega. No Brasil, país com meros 500 anos de idade, cuja cultura colonial foi reforçada por 25 anos de ditadura, a Constituição é regularmente reescrita por velhas oligarquias, com o objetivo de dar a impressão de evolução, mas somente a impressão. Para piorar, é crescente a intervenção do crime organizado sobre a vida política do país e, consequentemente, sobre suas leis, que há décadas são redigidas por gente que frequentou, frequenta ou frequentará o noticiário policial.

Alguns, alçados à mais alta corte do país, comportam-se como se fosse mais necessário manter intocadas essas normas do que atender aos anseios da sociedade por probidade, moralidade e responsabilidade na lide com a coisa pública. Chegam mesmo a criticar a pressão exercida sobre o poder público pela sociedade em busca do respeito a esses princípios universais, como o fez explicitamente o Ministro Gilmar Mendes durante o julgamento do caso Jader Barbalho.

Como boa parte da população brasileira, eu gostaria de sair às ruas, de peito aberto e soprando minha vuvuzela (ainda se vende vuvuzelas?), comemorando essa pequena, rara, mas importante vitória da sociedade sobre os criminosos infiltrados no serviço público. Mas nós, brasileiros, somos gatos escaldados. Sabemos que um número enorme de gente rica, poderosa e de mau caráter pode comprar um número ainda maior de gente sem caráter, egoísta e imediatista que, não por acaso, ocupa posições-chave na administração pública. Não convém comemorar antes que uma vitória definitiva e irretratável demonstre-se cristalinamente.

O recente reforço ao poder de José Sarney no governo federal, por exemplo, deverá criar obstáculos adicionais à plena observância do contrato social. A população brasileira gosta de política mas tem mais o que fazer: gostaria que os tribunais de contas e as câmaras legislativas exercessem sua função de fiscalizar o Erário, e só levanta de seu berço esplêndido quando os servidores públicos extrapolam todos os limites de ganância e irresponsabilidade. Um pouco mais de presença da sociedade na fiscalização faria maravilhas pelo orçamento da República e, por conseguinte, pela saúde, pela segurança e pela educação dos brasileiros, aproximando-nos de ideais de justiça, de administração pública e de bem-estar que temos o direito de almejar.