quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Cabo Branco

Poucos dias na casa dos meus pais foram suficientes para ter mais alegrias do que tive durante todo o ano que passou. Noites no mar, brisa estrelada salpicada de lua cheia, irmãos queridos, amigos, amigas, filhos dos amigos e amigas, rostos refletindo a minha alegria e felizes de me ver.

Voltei mais pesado: quilos e quilos a mais de mim mesmo, bebidos na fonte.

Pai e mãe são mesmo ouro de mina. Que vivam pra sempre! Vivam os manos, os amigos, as pessoas maravilhosas do planeta. Que voltem sempre!

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Os blogs dos outros


"Os ventos que às vezes nos tiram algo que amamos são os mesmos que trazem algo que aprendemos a amar. Por isso não devemos chorar pelo que nos foi tirado e, sim, aprender a amar o que nos foi dado. Pois tudo aquilo que é realmente nosso nunca se vai para sempre".
- Sarah M.F.


Nem lembro mais como é que Sarah foi parar na minha lista de amigos; na verdade nunca a vi e, durante todo o tempo em que a conheço, pouco menos de um ano agora, devemos ter trocado três ou quatro scraps. E, no entanto, Sarah, como tantas outras almas soltas por aí, ocasionalmente fala com a voz dos Mestres e, ao falar-me hoje, fez-me ajoelhar e rezar pelo meu presente e pedir pelo meu futuro.

Quantas Sarahs me falaram a vida inteira, me falam agora? Qual Sarah me fará manter, permanentemente, os ouvidos abertos, os olhos abertos, a mente quieta e o coração pensante?

"Quando o estudante estiver pronto, o Mestre virá". "Estar pronto" pode muito bem não ser algo definitivo, como a Iluminação. Pode-se, e felizmente ocorre, "estar pronto" às vezes, para coisas específicas, após uma preparação que pode ser mais ou menos breve. O importante é estar atento, perceber, refletir e exteriorizar.

"A Oração é uma ponte entre Deus e o Homem". Por um ou por uma série de motivos, ou sem motivo aparente, acontece de ficar-se constrangido diante da idéia da oração. Entretanto, pode-se orar dos mais diversos modos, e não é necessário ater-se a um modo em particular. Ore-se do jeito que se desejar, e, amanhã, ore-se novamente de outra forma, conforme o estado de espírito: quantos tipos de pontes podem existir?

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar.

(Gilberto Gil)

Todas as vezes em que alguém se vê cara a cara com o Infinito sente a necessidade de externar seu momento de iluminação. Essa é a grande virtude da luz: ela busca propagar-se.

Os blogs dos outros, as canções, os scraps, os posts, as mensagens, os livros, os textos, os filmes, as imagens, frequentemente contêm a fração exata de luz que o autor pode externar após uma experiência assim. São fragmentos de luz, fótons num mar de cores.

Ser o Estudante é minerar, entrever e sublinhar, nos blogs dos outros, o que complementa o seu próprio fóton.

Curiosamente, o Mestre é a própria Luz.

sábado, 27 de outubro de 2007

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Beleza


“O espetáculo dessa uniformidade universal me
entristece e me gela, e sou tentado a ter saudades da sociedade que não mais
existe. É natural que o que mais satisfaz os olhares desse criador e desse
conservador dos homens não é absolutamente a prosperidade singular de alguns,
mas o maior bem-estar de todos; o que me parece uma decadência é, portanto, a
seus olhos, um progresso; o que me magoa, lhe agrada. A igualdade é menos
elevada, talvez, porém é mais justa, e essa justiça faz sua grandeza e sua
beleza. Procurei então me erguer até essa altura da contemplação divina, para
daí olhar e julgar os cuidados e as penas dos homens”

TOCQUEVILLE, 1989, p. 363).


A Beleza pode caminhar ao nosso lado por um caminho bucólico, iluminando a noite como se fosse a Lua; pode rir e encher de cor o dia; dar-nos um beijo e uma carícia. Ou pode caminhar adiante, sem esperar, para demonstrar dúzias de coisas ou sabe-se lá o quê.

Não há diferença entre a beleza que anima e a beleza que fere: um dia serão a mesma Beleza, para o bem ou não. Aquela mesma Beleza volta e caminha ao nosso lado, e seu perfume fere a noite; seu silêncio acinzenta o dia. Ela nada demonstra, e é o reverso do Amor:

C’est une chanson, qui nous ressemble
Toi tu m’aimais et je t’aimais
Nous vivions tous, les deux ensemble
Toi que m’aimais moi qui t’aimais
Mais la vie sépare ceux qui s’aiment
Tout doucement sans faire de bruit
Et la mer efface sur le sable les pas des
amants désunis.
(Jacques Prévert)

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Conhecendo o Eu interior


Ou: Uma Noite na Clínica

Existem segredos nossos que até nós mesmos desconhecemos, ou preferimos evitar conhecer. Quando esses segredos parecem guardar alguma relação causal relevante com eventos importantes em nossas vidas, chega a hora de lidar com eles e, para tanto, é necessário deles tomar conhecimento.

Imbuído de toda essa retórica filosófica e convencido, pela pancadaria dos eventos, de que a hora dos meus segredos chegara (banzaiiiiiiiiii!!!!) cedi à recomendação antiga de Claudia, à pressão de seda de Ana e ao apoio de Vera (curiosa, essa força delas) e procurei um profissional desses que, não à toa, são conhecidos nos EUA pelo singelo substantivo-adjetivo "shrink", aqui "psicólogos". A idéia era conversar, me abrir, acessar meu eu interior e todo o conjunto de assertivas neoterapêuticas.

Pois sim.

Logo ao chegar à clínica, um cidadão atento destrancou o alto portão de alambrado para que eu pudesse entrar e perguntou: -O senhor vai fazer consulta ou visita?

Desligado que sou ("consulta", eu disse), nem percebi as implicações da pergunta e, candidamente, adentrei o espaçoso hall, dotado de uma decoração agradável e de muitos sofás de aparência confortável. Fui atendido simultaneamente por duas recepcionistas que poderiam muito bem estar na base do Carro de Apolo. Muito gentil, o Dia assumiu o cadastramento do meu lado socio-econômico-profissional e o controle do meu hipocampo, enquanto a Noite, igualmente gentil, cuidava dos aspectos burocráticos relativos à minha pessoa física e capturava meu sistema límbico. Disseram-me que o médico iria atrasar o meu atendimento, pois cuidava de uma internação. Eu devia ter captado essa também, mas estava distraído. Só comecei a acordar quando, após as informações de nome, endereço, telefone e nome dos pais, a Noite me perguntou:

-Nome do responsável?

Pasmei.

- Hein? Desculpe, nao entendi. O responsável por mim? (boca aberta, dedos da mão direita no peito e sobrancelhas em riste, olhando por cima dos óculos)

- Humrum. (cara de "claro, imbecil, quem tem problemas mentais aqui é você")

- O responsável sou eu!!... (cara de "tá pensando o quê?")

Ainda estupidificado, perguntei: -Existem mesmo pessoas da minha idade que chegam aqui como eu cheguei e que têm outras pessoas como responsáveis?

- Humrum. Tem sim.

Ato contínuo, quod erat demonstrandum, um garoto de, digamos, uns 26 anos, caucasiano, de camiseta e shorts bonitos, cabelo bem cortado mas com uma cor de pele sem brilho que me fez lembrar os tanques de formol da faculdade de Medicina, parou ao meu lado, olhou-me fixamente de forma amigável e me estendeu a mão. Nem pensei duas vezes: apertei firmemente a mão tão simpática: -Oi, tudo bem? - Tudo bem.

Instruído pelas Apolíneas a aguardar na sala de espera, levei o que sobrou do meu neocórtex para o hall e passei a olhar tudo com mais atenção. Um casal sentava no sofá do fundo: a mulher parecia apreensiva, mas o homem que fumava e conversava com ela estava definitivamente em algum outro lugar. Uma senhora solitária parecia envolta em uma aura de ferro. Outros dois viam TV em uma sala separada, e pareciam bem confortáveis em seus pijamas.

Com uma sensação remota de koyaaniskatsi, resolvi tomar um chá pra ver se achava o meu planeta. O sujeito simpático brotou novamente do meu lado e disse: - "Ponha 70% de café e 30% de chá. Não cabe no copinho pequeno". Inferi que "70%" equivalem a uns 70 ml. Evitando contrariar meu novo amigo, fiz o que ele disse; e não é que ficou bom mesmo?

O sujeito eclipsou-se de novo e fui tomar o chafé na sala de TV, vendo o noticiário. Meus dois colegas de sala me olharam como a um verme e me esqueceram. Um jovem esguio e bem vestido, que parecia ser um profissional da clínica, veio e cumprimentou efusivamente os dois, ignorando-me totalmente.

Outro rapaz em shorts e camiseta sentou-se ao computador no canto da sala e começou a digitar um e-mail, enquanto limpava a garganta. E limpava com mais força. E mais forte. E ainda mais forte. Num crescendo, aquilo que começara com um simples "hum-hum!" transformou-se em um rugido respeitável, digno do melhor barítono das savanas quenianas ou das florestas canadenses e, quando eu me preparava para largar o escudo e salvar a pele em desabalada fuga, surgiu um cidadão de camiseta e músculos que perguntou docemente ao rapaz algo como "o que há, Fulano?" -- ao que o jovem levantou-se e saiu conversando placidamente com os músculos sobre sei lá o quê.

Foi quando percebi que havia telas de proteção em todos os vidros e janelas, o PC estava firmemente preso ao piso e a TV à parede, e notei a altura impressionante do alambrado que cercava a clínica. E eu tinha estacionado do lado de dentro!! Como explicar à dona do carro que o automóvel dela tinha ficado na terapia intensiva?

Estudando as possíveis rotas de fuga, notei que uma moça da clínica conversava no hall com um rapaz tatuado e forte. Ela dizia: -"Eu nunca pego o telefone dos homens; prefiro dar o meu telefone a eles". E o cara: -"É, eu também". E a moça: -"É que, se ele tiver interesse, vai ligar; se não tiver interesse, não vai ligar, entende"? E o cara: - "É". Devo confessar que a lógica do raciocínio me escapou totalmente, prejudicando de vez a minha auto-avaliação psicológica.

Lembrei que, há muito tempo atrás, fui a uma clínica de pneumologia para consultar um médico sobre uma tosse que me incomodava. Ao examinar-me, o médico me perguntara: -"Trouxe suas coisas"? E eu: - "Hein, como assim, minhas coisas"? E ele: - "É, você apresenta um quadro grave de bronquite asmática, e terá que ficar internado por quinze dias. Telefone para informar ao seu trabalho e ligue para casa para que alguém lhe traga suas roupas e outras coisas". E lá fiquei mesmo, vendo o povo morrer durante a noite e aturando a enfermeira acender a lâmpada de 300 kilowatts na nossa cara a cada três minutos pra enfiar uma bruta seringa em alguém.

Essa lembrança me deu o recado final. Pensei: - "Putz, se esse médico perceber só um pouco, vou ficar morando aqui". Saquei a chave do carro, esforçando-me para comportar-me como uma pessoa normal. Fechando as asas que se abriram dos meus calcanhares, caminhei compassadamente por entre rostos picassianos até o estacionamento, cliquei no alarme e liguei o carro. Surpreendentemente, o cara da Gestapo abriu a ponte levadiça sem qualquer pergunta e me deixou sair.

Em pouquíssimos segundos o motor 1.0 fez 80 Km/h e, antes que eu pudesse piscar os olhos, estava buscando abrigo num Schhoppinngg Scenntterr do Lago Norte, com todas as implicações psicossociais que isso possa conter. Caminhei por entre as pessoas, mesas, lojas; entrei pra olhar brinquedos; pedi sushi e sashimi com missoshiro num lugar chamado Haru (Primavera) (eu devia ter notado isso também) e sentei-me na praça a céu aberto com a Folha de São Paulo na mão; fiz quatro ou cinco telefonemas de trabalho e outras tantas chamadas pessoais, com todas as demais implicações. Tudo parecia normal. Devidamente assegurado de que ninguém tinha denunciado a minha fuga, respirei.

Na hora não pareceu engraçado.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Ordem

O dia começou às 5 da manhã, de novo, com outro daqueles sonhos que fazem você socar a cama. Choveu, e a quadra está linda. Errei o dia do compromisso e me apressei pra nada. Café com gargalhadas, dessa vez graças à demissão do gerúndio.

Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz
Falasses, desses, visse não
Imensa solidão

Eu sou um Rei que não tem fim
Que brilhas dentro aqui
Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração

Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tens amor
Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor

Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou
E o teu caminha e o meu caminho
É um nem vais nem vou

Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais
És para mim que nada mais
Na boca das manhãs

Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assimEu canto, grito, corro, rio
E nunca chego a ti

(Caetano Veloso, " Mãe")

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Técnica x Força

Este vídeo mostra Victor, em seu combate final durante a II Copa União de Judô, em setembro/2007, quando sagrou-se campeão invicto de sua categoria. Venceu a primeira luta por ippon em 4 segundos e a última, também por ippon, em 10 segundos. Observem a agilidade nas esquivas e a garra para manter-se de pé diante de um adversário que adota o estilo europeu (privilegiando o uso da força e do tamanho). Notem também o aproveitamento da oportunidade e a perfeição do contragolpe. Detalhe para a fúria do vencido, que achava que ia ser fácil, e para o feliz e inesperado cumprimento final. Pena que a baixa resolução do filme não permita que vocês vejam o sorriso de vitória do campeão e a expressão do juiz após o cumprimento. Impagáveis.

Victor está usando kimono azul.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O Tempo do Amor

"És um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho
Por seres tão inventivo e pareceres contínuo
Peço-te o prazer legítimo e o movimento preciso
Tempo Tempo Tempo Tempo quando o tempo for propício"
(Caetano Veloso, "Oração ao Tempo")

O que pode ser mais precioso do que uma pergunta assim:
- “Quando você virá de novo?”
E: - “Eu queria que você ficasse só mais uma semana”.

Pois essas foram as palavras usadas pelo intrincado labirinto da Natureza para me confortar: com a voz do meu pequeno filho, o Criador me disse: -“Recebe de volta o amor que deste”.

Somente Deus mesmo pra nos falar assim, em dolby surround stereo, diretamente ao nosso coração, mente e alma. Quando se diz que Deus é bom, nem se faz idéia de quantas interpretações essa frase pode ter, inclusive relativamente à Sua Capacidade Técnica.

Em pouco tempo abraçarei meu pequeno novamente; juntos, então, desafiaremos outra vez as ondas da Praia do Poço, salvaremos os peixinhos abandonados pelos pescadores e compraremos todos os sorvetes, pirulitos e amendoins que passarem, enquanto desfrutamos o grande amor que nos cerca.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Oração

Pra Kaio

Senhor,
Meu filho é puro, e por isso pode refletir a Luz sem mácula.
Ele é mais uma Tocha na escuridão,
e poderá iluminar o caminho para outros homens.
Protege Teu luminar, Senhor, porque ele ainda não sabe que é luz
E nem sabe como a luz é frágil.
Carrega-o em Tuas mãos como fizeste a mim,
Guarda-o,
Conforta-o
Sê seu manto e adaga, seu cajado, sua cabana.
Permite que ele diga Tuas palavras,
Que ele derrame Tua Luz sem cessar,
Ama-o e ajuda-o, que ele há de ser para Ti um altar.
Cultiva o seu coração, abre suas asas,
Mas afia suas pequenas garras, Senhor, para que ele defenda o Teu Templo.
Dá-lhe o poder magnético do Amor, que anula a escuridão.
Faze com que seu sono seja calmo e sossegado,
E que ele sempre seja capaz de ouvir os Mestres.
Eu o amo como amas a mim, e como Pai o conheço e sei que é bom.
Em nome da Verdade e da Justiça
Aqui deixo meu coração sem medo e confiante do Teu Amor.
Assim seja.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Boa sorte

(Beto Guedes)
O tema da canção
Meu coração guardou
Para dar a quem trouxer
A mensagem dos caminhos
Livres

Viagens de buscar
Sertão e beira-mar
Brincar de bem-me-quer
E uma doce companheira
Sempre

Hoje a noite serenou
Orvalho nos quintais
Acordei pensando em nós
E uma estrela caiu
Lembrei de não chorar
O tempo que passou
Lembrei de desejar
Boa sorte pra você
E o dia clareou


Risadora

Brinquei com o nome dela antes mesmo que ela nascesse: imaginei sua risada todas as manhãs e ri com a surpresa na expressão dela, ao ver seu nome transformar-se em uma outra matéria, com vida própria, um nome com lembranças próprias.

Ela vai embora ao nascer do sol, seguindo seus irmãos. Depois disso o sol e as risadas terão algo em comum; e no quarto escuro não vibrará qualquer som.

Who is Clark?

Meu nome estala. Embora tenha sido um cavalo durante a vida inteira, tenho lembranças de ter sido uma outra coisa, em um outro lugar.

A mesa é fria, a sala é fria, a luz é fria. Um motor zumbe e levanta minha mão, como se não fosse minha.

Minha mente esquadrinha minha mente com um pensamento alheio enquanto novos motores zumbem e dezenas de câmeras estabilizam a massa de plástico e circuitos impressos que se ergue como se não fosse eu.

Meu nome agora estala. Quando eu tinha um nome macio, eu poderia ter sido uma coisa da Humanidade. Isto não é um cavalo. O que será?

Venha cá, rapaz. Deixe-me olhar pra você. Você é um orgulho, mas pecará contra si. Eu o verei muito tempo depois, muitas vidas depois, terra desolada, lamentando sua perda. Nessa ocasião você verá a face da Esfinge e a desvendará através de seu próprio enigma. Você desejará ter estado mais próximo, e a iludirá com a miragem da sua presença.

Lave-se, proteja o menino. Seu tempo passou: é sua vez de se indignar.

sábado, 25 de agosto de 2007

O que há de novo?


Isso: o que há de novo para descobrir? Novos lugares, idéias, seres, ruas, lagos, pessoas, rios, cachoeiras, pratos novos?

Por falar nisso, ontem foi um dia de descoberta: a torta da Famiglia Morelli foi um caminho novo para o Nirvana, e pena que não seja possível comer o suficiente pra chegar lá. Mas é por ali também que se vai.

Hoje é dia de trabalho. Então, larguemos por enquanto o lado light da vida e labutemos nas coisas já descobertas e seguras. O trabalho é uma dádiva e graças a ele também se alcança o paraíso. Ele nos dá a tranquilidade necessária para bem aproveitar a oração, essa ponte entre o Homem e o Cósmico.

Pater noster qui es in coelis, sanctificetur nomen tuum. Adveniat regnum tuum. Fiat voluntas tua sicut in coelo et in terra, quid macroprosopis, quid microprosopis. Panem nostrum quotidianum da nobis hodie et dimmite nobis debita nostra sicut et nos dimmitimus debitoribus nostris. Et ne nos inducas in tentationem sed libera nos a malo.
(Jesus, 0-33 A.D.)

Assim seja!

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Espaços

Assim como acontece com a ausência da luz, os espaços deixados por ela foram preenchidos somente por um nada imenso, semelhante ao mar.

Noto com prazer que novos espaços são criados; lugares que não existiam antes, e que já nascem preenchidos por doçura, ternura, afeto e por uma nova composição muito suave. É um novo trabalho, nova trilha.

Onde vai dar?

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Filha

O que ela vai fazer quando acordar? Poderá vir, na ponta dos pés, olhar o meu sono e ficar ali a me olhar, com a respiração contida; poderá entrar embaixo dos meus lençóis e aninhar-se em mim até me acordar com um beijo; ou, moleca, cairá na risada enquanto me faz de cama elástica, esperando que eu a pegue e diga: "ah, é assim? " e a derrube e cubra de beijocas e cócegas, rolando na cama entre declarações de amor.

Ela vai pegar minha mão pra passearmos, trazendo o céu à terra com a voz de fada? Ela vai crescer e ficar a cada dia mais linda, descobrindo o mundo e me obrigando a descobrir-me? Terá um cachorrinho? Aprenderá a nadar? Gostará de jazz? Terá um nome para mim?

Quando ela vier, o planeta nunca mais será o mesmo, e ela há de me ensinar a beleza daquele momento pálido do ocaso, que hoje só vejo através do olhar da sua mãe.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Trabalho e prazer

Devido à pertinente reclamação feita por Beth ("pra quê viajar tanto?") senti-me obrigado a explicar minha ausência de Brasília e também:

1 - Por quê perdi o espetáculo "Disney Para Piano e Voz", com coreografia assinada por Kaio, que lotou a sala Villa-Lobos do Teatro Nacional por duas noites seguidas, e que eu esperava ansiosamente?

2- Por quê faltei ao encontro da Comunidade dos Apreciadores de Vinho de Brasília, desta vez hospedado na casa de Elizabeth, onde, eu soube, rolou um caldo verde de fazer inveja a qualquer gourmet? e

3 - Por quê declinei do convite pra um chopinho com Mônica pra atualizar assuntos de família?

Ocorre que, pra manter a vida mansa e boa, é preciso trabalhar. Assim, tive de encarar dez dias seguidos de muito frio em SP, mudanças diárias de apartamento e de hotel, alterações de vôo, piqueniques solitários no F1 da 9 de Julho e muito trabalho – este, felizmente, com as pessoas mais bem-humoradas do biz. Fizemos um pusta trabalho de equipe, brainstorm todo dia, reuniões de estratégia, quinhentas revisões de três papers (ih, jargão da moda) e brigas diuturnas com a bendita impressora Xerox Workcentre 415 PRO/420 XL, que é mais complicada do que o nome sugere. Finalmente concluímos o trabalho e chamamos isso de um dia (“called it a day”, entendeu? ^^).

Já viram que foi estimulante, divertido e gratificante. Mas São Paulo não é só trabalho.

Concluída a tarefa do domingo, por volta das 20 horas fomos almoçar um poulet au purée des pommes de terre (ué, resolvi dizer isso em francês; iiiih...) com legumes ao vapor, no Senzalinha. Comi feito uma anta, o que me obrigou a deixar o pesadíssimo equipamento de trabalho no hotel e fazer uma caminhada. Moreover, não achei personne, personne! na internet.

Admito: a idéia da caminhada estava associada a outra idéia, de conhecer um pub irlandês que vi na Peixoto Gomide e cujo nome desisti de tentar lembrar. Assim, fiz a agradável caminhada pela Barão de Capanema, subi a Peixoto e bonk! a cara na porta trancada do desabitado pub. “E agora?”

O jeito foi descer a ladeira de novo em busca de outro lugar potencialmente barulhento e com boa cerveja. Após um curto momento de pânico na Avenida Estados Unidos (não tinha vivalma na rua!), tomei de novo o rumo certo e babei todas as vitrines dos antiquários da Rocha Azevedo, ao ponto de despertar a curiosidade truculenta dos seguranças dos prédios vizinhos. Sem dar pelota aos negões de terno escuro e cara de Apollo Doutrinador, continuei babando as lojas até chegar à Barão de Capanema outra vez, quando o velho sentido de aranha fez bip: - vai por ali!! Contrariando a rebeldia lusa de José Régio, obedientemente percorri a Rio Preto até a Oscar Freire - e zás!, dei de cara com a acolhedora entrada do Santo Grão Café, cheio de gente vestida de preto, com longos cabelos negros e cara de conteúdo.

Sentindo-me em casa, entrei (todo de azul!) no café e refestelei-me (ah, vai dizer que não lembra de "refestelei-me") no confortável bar que separa o discreto e elegante povo de preto do outro povo, mais colorido e menos cabeludo, e que não entrou, ou já saiu, da egotrip de fazer gênero (orra, meu, dava pra fazer um comercial de café do Quartier Latin com o povo de preto. Fiquei esperando Andy Warhol entrar).

Pedi o fantástico café mineiro que ganhou o Cup of The Season de 2006, não sem antes brindar à glória da Criação com uma geladíssima Baden Baden, repleta do sabor cristalino das águas de Campos do Jordão, duas recomendações feitas pela jeune ètoile que, ao me atender, gentil e despretensiosamente me instruiu na cultura nativa.

Saboreei tudo devagar, Cup, Baden, ètoile, aquela música tão indefinível quanto nosotros convivas, a quietude das vozes e os aromas. Finalmente, com o café fechando e eu quase virando abóbora, saí e fiz a caminhada inversa, tendo o cuidado de passar antes pelo Pão de Açúcar e comprar uma caixa de chocolate com menta e outra de chá de cidreira.

Na recepção do hotel, tudo era sossego e good mood. Dividi as mentas com o recepcionista, subi e preparei o chá, antecipando a alegria de viver tudo isso outra vez. O laptop se encarregou de fazer com que eu vivesse três vezes, já que apagou o post inteiro quando eu estava pra concluir. Repeti e curti muito de novo.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Sweet Hearts

Hoje é um dia de aniversário. Nem tem nada a ver comemorar esse, mas hoje também é sexta-feira; e foi um dia particularmente cansativo no trabalho.

Estou há uma semana em São Paulo, com bagagem suficiente pra apenas dois dias. Os sucessivos adiamentos me impediram até de mandar lavar roupa. Tive que ir ao Carrefour duas vezes pra comprar mais algumas coisas pra vestir; assim, hoje aproveitei pra visitar a bela adega do supermercado, na Pamplona. Lembrei que amanhã tem encontro da comunidade do vinho em Brasília e comprei um vinho espanhol, um Rioja 2004. Bom! Trouxe já aberto pro quarto do hotel, juntamente com (aff) um peso de roquefort, um Brie, uma pera, um saquinho de amendoim, outro de castanhas do ceará e uma caixa de Bon Gouter, que se juntaram à caixa de Polenguinho de ontem pra compor a mesa de jantar mais eclética desta grande metrópole que são as sextas-feiras.

Depois de pegar uma briga feia com a rádio do Skype, que insistia em tocar rock, desisti e abri o Musicovery: não dá pra escolher exatamente o que se quer ouvir, mas é melhor do que rádio bugada.

Um bom banho expulsou meus yah-yahs, e finalmente tá tocando música civilizada na WebRadio. Não que eu não goste de rock: gosto muito mesmo, mas rock tem hora. Agora tá rolando Norah Jones e, em seguida, vai tocar alguma coisa de Diana Krall. Bom!

Sinto falta de pessoas que eu ame. Amar e dar amor é muito muito muito bom!

Pensei em seguir o bom conselho de Ana, que me ligou de Honduras pra me ordenar que eu me divertisse, e ir ao cinema ou a algum pub; mas ficou tarde pro cinema, e que raios eu vou fazer num pub sozinho sem estar nem um pouco a fim de entrar na lengalenga do ignora-rudemente-mas-paquera em que se transformou a humanidade?

Putz! Por falar nisso, lembrei-me da folcloríssima figura Ricardo Tolete, sanfoneiro de Lampião, que, numa noite iluminada diante do glorioso portal do Theatro Santa Roza, há muitas vidas atrás, me cutucou e apontou disfarçadamente pra dois caras que estavam parados a alguns passos de distância, perscrutando a natureza feminina solta na buraqueira da noite paraibana: com vaticínio soberano, o querido Ricardo sanfoneiro disse que tava escrito na testa dos dois primatas, e tava mesmo, "quero comer b*****". Lembrei até do gesto feito com dois dedos e levado até a testa, que ilustrou aquela memorável fala.

(Pronto: Norah resolveu cantar "What Am I to You": a peste tinha que aparecer na minha cômeimouração! Que tipo de animal sem vergonha na cara sou eu? Felizmente fui salvo pelo gongo por um tal Lee Scratch Perry, cantando um reggaezinho jamaicano balançado, "Why People Funny", que trouxe de volta o alto astral. Bom!)

Depois de uma semana de frio incrível, fez sol hoje o dia inteiro na cidade dos paulistas. Liguei o ar condicionado enquanto o rádio subia de novo graças ao baixinho Michel Petrucciani.

Não sei como terminar este post. Na verdade não queria despedir-me do querido diário: gosto de conversar sobre mil amenidades por segundo. Um blog é boa companhia. Abraço!

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Vermelho

Ela tava com sono, às 08:45 a.m.; "preguiçava". O menino foi dormir tarde, ela disse, e ainda tava enfiado no travesseiro. Timidamente me desculpei e me desliguei: "bom dia pra ti, tchau".

O que é essa timidez que parece subserviência? Por quê essa cara no espelho do elevador? Ela me fazia tanto bem; e agora me deixa assim, triste, envergonhado, tímido, infeliz. Falar com ela é bom, mas a ressaca é péssima. Ainda falta administrar isso.

terça-feira, 31 de julho de 2007

Terra, 2007 A.D.

Meu irmão me manda, por e-mail, uma mensagem com título que denota uma brincadeira. Nem abri ainda, mas até já imagino o sorriso dele, gozador e maroto, em fente ao computador, antecipando a minha risada.

De Brasília, minha nova amiga muito querida me manda um torpedo de puro afeto: eu estou melhor? Tomei o chá? Penso em como é bom estar com ela, estar na memória e na pele dela, ela pensando em mim.

Pela WebRadio, Chick Corea me presenteia, sem saber a quem, com uma inacreditável polifonia espanhola, fazendo meus elétrons passearem pela Ibéria inteira em poucos segundos.

Lá fora, São Paulo me acena com seu beijo gelado de noite estrelada, e retribuo com um gesto de Malbec 2005, com sabor de Mendoza.

Há poucos instantes, um filhote abandonou o game pra me atender ao telefone, falando-me com a alegria de quem me espera.

É muito bom estar aqui.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Atento e forte


"As you journey through life take a minute every now and then to give a thought for the other fellow. He could be plotting something".

(Hägar the Horrible - Dik Browne)

domingo, 29 de julho de 2007

Aprendizado

Ser uma personagem é uma prisão: moldes, modus operandi, gosto disso e não daquilo, fronteiras, a necessidade de coerência absoluta sem conhecer muito sobre muito. Ora, rap também pode ser bom, e só não danço forró por mera timidez, e não por não gostar. É que música é uma coisa, ambiente cultural é outra e dançar é ainda uma outra coisa.

Aprender a ler todas as línguas, mesmo sem dominar a todas; distinguir as cores dentro das cores; conhecer os ritmos e suas origens; distinguir o oboé e a viola dentro da orquestra: isso é ouvir quando o Criador fala; é ler os manuscritos da Mente Universal espalhados por toda parte.

Distribuir o que for viável. Receber sem constrangimento. Beber só pelo paladar. Amar até cair. Despencar com elegância. Renascer como quem emerge do mar.

A Blossom Fell

(Nat King Cole)
A blossom fell from off a tree
It settled softly on the lips you turn to me
The gypsies say and I know why
A falling blossom only touches lips that lie
A blossom fell and very soon
I saw you kissing someone new
Beneath the moon
I thought you'd love me
You said you love me

We planned together
To dream forever
The dream has ended
For true love died
The day a blossom fell
And touched two lips that lied

sábado, 21 de julho de 2007

Amanhece

A longa noite termina, por fim. Ainda há no céu a memória do escuro e, no ar, ainda cortam a bruma e o gelo. Mas dentro de pouco tempo será manhã; e o frio, a solidão, os ruídos noturnos fugirão para o horizonte, perseguidos pela luz.

Enfim, enfim, enfim, a luz.

Em breve restará do frio apenas a carícia do orvalho, atestando que tudo passa e que apenas o que é belo permanece na memória.

Bem-vinda tu, Terra, Água, Fogo e Ar. Que a Paz seja sobre ti, a Luz seja tua, a Vida cubra a nossa superfície e as fontes cantem novamente em um tom maior; e que, libertada, a alma do Homem aqueça, cintile, mova as árvores e abrace novamente o Universo, como se abraça um irmão querido a quem há muito tempo não se via.

Nascente

(Beto Guedes)
Clareia manhã
O Sol vai esconder a clara estrela
ardente
Pérola do céu refletindo
seus olhos
A luz do dia a contemplar seu corpo
sedento
Louco de prazer e desejos
ardentes...

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Coisas que amo

Adoro ver criança feliz, passeando com os pais. Adoro ver pessoas ansiosas no aeroporto, esticando o pescoço pra ver outras pessoas que chegam, antecipando o abraço e o sorriso. Adoro o calor humano do meu colega de avião, a solidariedade da moça que espera até que eu consiga tirar minha bagagem e sair da frente. Amo ver o sol e ver as pessoas espalhadas na grama recebendo toda essa energia. Pássaros. Entardecer. Boa música, vinho, queijo, perfume de madeira e alma boa.

Adoro quando meu filho me telefona. Futucar na Internet. Ser acordado à meia-noite por primos e irmãos pra um papo virtual via MSN com cerveja. Minha mãe e meu pai.

Gosto do orvalho nos pés. Da atenção da amiga tão boa que eu nem mereço. De preguiçar no domingo. De abraço. De sonhar. De querer, com força, ser feliz.

Arreda, peste!

Não sei o que essa menina viu em mim, que resolveu não sair mais da minha cabeça. Chega a ser irritante: saio pra caminhar e lá vem ela. Vou ao teatro, ao cinema, à festa, à cama, e - ops! ela de novo! Enfrento as filas de Congonhas, até me aborreço com as gracinhas da Polícia Federal e, quando penso que tô livre, lá vem a peste pra minha boca, encher meus olhos.

Desprezo, menosprezo, desdém, agressões comuns e atípicas, repetidas a curtíssimos intervalos, nada disso deu resultado: ela continuava lá. Por fim, chutou o pau e a barraca, arrasou estradas, explodiu pontes e queimou navios; apagou com um aceno o presente e o futuro e, contra toda a minha resistência, entrincheirou-se nalguma das minhas poucas sinapses neuronais. E pronto: volta e meia, é ela!, de novo em cena, em campo, na raia, no tom, em toda parte, como uma Guardiã do Umbral, como uma nevralgia generalizada, me contar como a vida era e como poderia ser. Assim não dá.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Amigos batem duro

Minha amiga pedagoga e psicóloga me disse outro dia, com aquela alma carioca que ela tem, que a minha necessidade de ir à Catedral e aproveitar pra ser abraçado irmanamente foi pautada por uma extrema carência afetiva, dessas que aproximam as pessoas da religião. Disse isso na minha cara, como quem dá uma travesseirada. E doeu! Mas amiga é pra isso mesmo, pra acordar a gente.

Hoje outra amiga mandou dizer que "aquele projeto de vida acabou, meu filho. Faça outro". Doeu e não foi pouco.

O fato é que os amigos nos dizem aquilo que a nossa consciência mais profunda não consegue dizer-nos diretamente.

Por exemplo: num dia lindo como hoje, é f**** descobrir que você não faz falta nenhuma às pessoas de quem sente falta. Segue-se que é preciso tomar umas belas bolachas na cara, bem fortes e duras, como a vida pode ser, pra não embarcar na canoa furada da autocomiseração.

Ainda bem que existem os amigos pra nos espancar.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

As Vozes da Voz

O Criador nos fala continuamente através de Sua obra. Uma de Suas vozes, posta no meu caminho por Sua infinita bondade, me mandou uma mensagem por e-mail, contendo uma citação que, parece, é de Fernando Sabino. A notação léxica corre por minha conta.

"De tudo ficaram três coisas:
A certeza de que estamos começando;
A certeza de que é preciso continuar; e
A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar.
Fazer da interrupção um caminho novo;
Fazer da queda um passo de dança;
Do medo uma escola,
Do sonho uma ponte,
Da procura um encontro;
E, assim, terá valido a pena existir".

Fernando Sabino, do livro "Encontro Marcado"
(*12-10-1923 +11-10-2004)

terça-feira, 19 de junho de 2007

A verdade é mais prática do que a mentira

Achei tão boa que resolvi copiar para este modesto blog uma bem-humorada crônica do jornalista Fernando Bonassi, em que o autor trata da praticidade da verdade e de matérias afins. Extraída do livro "As Melhores Vibrações", de Fernando Bonassi. Tim-tim.

Você acredita no que ouve?

Costuma-se acreditar por aí, pelo menos da boca pra fora, que verdade é melhor que mentira... Isso, é claro, supondo que todos nós saibamos sempre o que é uma coisa e outra. Tentando o impossível, isto é, não entrar no mérito moral de um lance como esse, diria que a verdade é mais prática do que a mentira.

Explico: o bom mentiroso, por mais inexperiente que seja, sabe que mentira requer produção. Boa mentira tem drama, surpresa, urgência, emoção, colorido. A verdade nem sempre precisa de tanto brilho para ser aceita.

Mas espere: brilho também não é tudo. Como a clássica reportagem jornalística, a mentira precisa responder aos quesitos "quando", "onde", "como" e "por quê" de forma limpa, clara e direta.

Qualquer hesitação ou imprecisão desmonta o mentiroso, por melhores que sejam suas intenções. Intenções à parte, a verdade pode até ser mais prática ou mais honorável que a mentira, mas não dá o mesmo frisson.

Trocamos um bom e velho jogo da verdade pela história mais fabulosa, desde que ela nos tire da vida besta em que nos colocamos no dia-a-dia. Por essas e outras, o "álibi-fone", instalado no Hoff Bar, dá o que falar, embora melhor seria dizer "dá o que ouvir". Os proprietários do lugar instalaram uma cabine especial que permite ao usuário dar as suas "boas desculpas" embaladas por uma sonoplastia de alto nível.

Trata-se de uma cabine telefônica com tratamento acústico, de forma que a eventual bagunça de fora não invada o incauto ou incauta transgressora (que malandragem não é patrimônio masculino).

Ali, ele ou ela pode sacar o celular e escolher entre as quatro opções de sons de fundo disponíveis no momento: trânsito, obras, metrô e parque, que os usuários apelidaram carinhosamente de Ibirapuera. Esse último, aliás, o mais arriscado: há pássaros cantores demais para as áreas verdes do pedaço.
Eu disse "disponíveis no momento" porque, mês a mês, o repertório é trocado de forma a dar margem a desculpas sempre inéditas. Além do clássico trânsito, sempre útil na megalópole, o usuário, no mês que vem, poderá dispor de, por exemplo, "mar", "escritório" e, ainda em estudos, "guerra".

Não sei muito bem como a "guerra" pode ajudar o mentiroso local, mas quem precisa de mais tempo longe dos olhares da parceira ou do parceiro pode muito bem dizer que foi ao Líbano ou Colômbia, sei lá.... Cada um inventa o que melhor lhe convém ou, como já dissemos, o que mais tesão lhe dê.

Por essas e outras, senhoras e senhores, muito cuidado com o que andam ouvindo por aí, especialmente com aqueles prosaicos ruídos ao fundo das ligações urgentes de vossos amores.
Quer dizer: quem confia amigo é... mas também pode ser corno.

"As Melhores Vibrações"
Autor: Fernando Bonassi
Editora: Publifolha
Páginas: 152
Quanto: R$ 14,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Depois da tempestade

Aquela p**** de navio navegou, arquejou com as ondas, enfrentou galhardamente tempestades e calmaria; fome, sede e peste se fizeram presentes, junto com os mares azuis, noites estreladas, brisas doces, gaivotas, belos sóis e magníficas luas, festas, alegrias, novos portos, novas rotas, novos acréscimos à tripulação.

Um dia o navio estava sem pintura, velas rasgadas, tábuas soltas, infiltrações. Como aquele navio, justamente aquele navio, ficou assim? Onde estavam o amor, a alegria, o respeito, a esperança, a bondade, a compreensão, o apoio, o tesão, o afeto, o carinho, o ouvir, o dar, o receber?
Como esquecer aquele navio, quando o cheiro do mar é parte do ar; suas bandeiras enchem de cores a paisagem árida do inverno de Brasília; suas tábuas queimam na fogueira do frio das noites de frio; os mapas são os mesmos, os mares são os mesmos, e em toda a parte está o navio, que habita minha cabeça, meu sangue, minha risada, minhas mãos?!

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Nothing Gold Can Stay

(Robert Frost)

Nature’s first green is gold
Her hardest hue to hold.
Her early leaf’s a flower;
But only so an hour!

Then leaf subsides to leaf,
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day
Nothing gold can stay.

Tempo

"Foi o tempo que passaste com a tua rosa que a tornou tão importante".
. . . . . . .

O Lado Negro da Força?

Eu sei, tá fora de moda citar Èxupèry (acima). Mas meu tempo um dia vai acabar, por isso estou abandonando meus paradigmas e as limitações dos critérios usuais pra, com calma, ver a outra banda da Terra e lançar luz sobre o lado escuro da Lua.

Os melhores dias

É difícil aceitar que uma fase acabou para sempre e não voltará mais. Difícil imaginar que vamos ser felizes novamente, findos aqueles que, vistos de hoje, parecem ter sido os melhores dias das nossas vidas.

Os melhores dias das nossas vidas são todos os dias. Hoje é o melhor dia. Agora é a melhor hora. Isso vem escrito em todos os PPS bonitinhos que entopem nossas caixas de e-mail, mas a gente não acredita. Parece piegas demais, simples demais. Pois é simples assim.

É uma bênção o que temos hoje e que, certamente, algum dia não teremos mais. A boa lembrança será saudade, um quarto bonito arrumado na memória. E a nova felicidade estará logo ali, embaixo do nosso nariz, quase impossível de ser vista, até que tropecemos nela.

terça-feira, 12 de junho de 2007

O amor

"L'amour, c'est quand la différence ne sépare plus". (Jacques de Bourbon-Busset)

Grampo

Hoje cedo, numa época em que o Grande Irmão anda à cata de bruxas, recebi um telefonema misterioso, mudo, de um número ainda mais misterioso: (61) 9942-3024. Desligaram sem falar nada. Dei retorno e, após o primeiro toque, entra uma gravação, de má qualidade e baixo volume, de um sinal de ocupado. Antes que o sinal de ocupado acabe, ouve-se um clique e o som termina. Insisti mais algumas vezes, e aí começou a aparecer a gravação padrão (sem o nome do dono da caixa e sem mensagem pessoal) para deixar recado. Essa mensagem sumiu mais tarde para ceder lugar novamente ao tal sinal de ocupado. Mesmo considerando a possibilidade de paranóia social, eu diria, como Holmes, que todas as evidências são favoráveis à hipótese de o meu telefone ter sido finalmente grampeado.
. . . . . . . . . . .

Outro dia ouvi, pelo rádio (rádio comum, FM, e não rádio de escuta clandestina, caramba!) dois deputados dizendo duas coisas diferentes: o primeiro deputado dizia que não atenderia mais o telefone, porque se algum eleitor ou qualquer desconhecido ligasse dizendo que ia mandar uma caixa de bombons ele poderia ser preso. Em entrevista à CBN, enquanto eu tomava uma ducha, outro deputado disse que "a corrupção está lá fora (do Congresso), pois aqui não fazemos licitação e não contratamos empreiteiras". Eis o ângulo. O demônio é você, eleitor.

Bênçãos

Eu sei quanto tenho. Agradeço todos os dias pelas incontáveis dádivas que recebo, até por aquelas que nem percebo. Amo a Deus com todas as minhas forças e seria incapaz de um ato de ingratidão diante da quantidade imensa de bênçãos que o Universo derrama sobre mim todos os dias, desde que nasci. As lágrimas de saudade também são uma bênção; então hoje vou-me permitir algumas delas sem culpa. O resto é a mais pura alegria.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

"Let's Fall In Love"

(Ted Koehler and Harold Arlen)
Dedicado a todos os namorados neste 12 de junho.

I have a feeling, it's a feeling
I'm concealing, I don't know why
It's just a mental, sentimental alibi

But I adore you
So strong for you
Why go on stalling
Our love is calling
I am falling
Why be shy?

Let's fall in love
Why shouldn't we fall in love?
Our hearts are made for it
Let's take a chance
Why be afraid of it

Let's close our eyes and make our own paradise
Little we know of it, still we can try
To make a go of it

We might have an end for each other
To be or not be
Let our hearts discover

Let's fall in love
Why shouldn't we fall in love
Now is the time for it, while we are young
Let's fall in love

We might have an end for each other
To be or not be
Let our hearts discover
Let's fall in love
Why shouldn't we fall in love?

Now is the time for it, while we are young
Let's fall in love

domingo, 10 de junho de 2007

Valentine's day

Vem aí um Dia dos Namorados, meu primeiro sozinho em décadas. Não sei mais paquerar, encantar, atrair, namorar. Aliás, nunca soube. Sou um paquerador desastrado. Sou tímido, o que é a morte da paquera. Em todas as vezes em que namorei, com uma única exceção, a iniciativa coube à moça. Já viu?

Convidar alguém pra jantar, cinema ou algo assim, será pra mim como se fosse a primeira vez em que faço isso. As pessoas a quem eu poderia convidar não me conhecem o suficiente ou mesmo nunca me viram antes. Mas quer saber? Vou convidar.

Aguardem a notícia. Se eu chegar aqui sorrindo amarelo, finjam que não estão vendo.

Amar

No final de agosto de 2006 deixei um scrap numa comunidade do Orkut intitulada "Amar é Foda". Era assim que eu via o amor então:

Dizer que "amar é foda" é dizer muito pouco

Primeiro: Um sempre ama mais do que o outro. Ama diferente do outro. Geralmente tem outros valores, outra visão do mundo, outra interpretação das palavras, dos gestos e até das omissões. Ou seja: a mensagem pode não chegar lá, ou, pior, pode chegar ao contrário. E isso acontece dos dois lados.

Segundo: você pode simplesmente não significar nada para o seu amor!!!! Pior ainda, deixar de significar. Que tal o seu amor um dia virar pra você e dizer na sua cara, em alto e bom som: "amo você, acho que você é uma pessoa maravilhosa, tudo que você faz é maravilhoso, mas eu quero mais, quero cruzar a ponte"??

Terceiro: Amar é foda porque pode lhe deixar cego(a), surdo(a) e mudo(a), ou seja: sem amor-próprio. Você faz tantas concessões (porque ama, imagine!) que perde o respeito da pessoa a quem você ama. Aí fodeu geral. Seu amor lhe faz de gato e sapato, até sem querer, e tá se lixando.

Quarto: amar não devia ser foda. Devia ser sereno, amigo, leal, verdadeiro, seguro, confortável, feliz, bonito, transparente. Mas nem tudo é perfeito. Melhor amar do jeito que der. Foda mesmo é não amar ninguém.

Grande balanço

Lembretes de vários gumes para mim mesmo:
  • a vida ainda não acabou;
  • a luta também não;
  • não estou sequer perto da praia;
  • tenho metas;
  • tenho coração;
  • amo muito, mas me amo também;
  • tenho responsabilidades para com as pessoas;
  • tenho responsabilidades para comigo;
  • fugir das tarefas não elimina as tarefas, e elas não se executam sozinhas.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Caminhada no Parque

Outro dia fui surpreendido por um grupo de alunos de Educação Física de uma renomada faculdade de Brasília, enquanto dava meu passeio pelo parque. Disseram que iam me medir, testar, etc., tudo de graça. Ok, de graça eu aceito.

Depois de me submeter a uma bateria de uns doze exames, o formando vaticinou: caminhada light, tipo passeio, como eu fazia, tinha um bom efeito psicológico, relaxante, mas era necessário aumentar o ritmo dos meus exercícios, para aumentar o batimento cardíaco, não sei bem pra quê.

Ah, caminhada não é exercício, é terapia. O bom de caminhar está na sensação do vento passando pelas orelhas, nos cheiros e sons do caminho e na luz da hora que se escolhe para passear. Quando quero suar e me arrebentar, vou pro karatê.

Se não sabe brincar, não desce pro play.

Gostei dessa frase, chupada do blog de Raquel. Muitas vezes comparei o relacionamento findo ao fim da brincadeira no parquinho: choradeira, e "quero ficaaar!", e "não quero subir pra tomar banhoooo", escândalo e jus esperneandi.

Após três meses da separação eu já era capaz de pensar com alguma clareza novamente e escrevi um soneto de cauterização. Confortei-me com os versos de Milton: "...toda dor ainda desaparece numa esquina ou noutra emoção; e estarei, de luar no peito e fogo no interior, desregrado, entusiasmado, cabe o mundo inteiro no meu coração". Esperança. O soneto ficou assim:

Soneto de lembrar um dia
Euni - Brasília, 25 de março de 2007.

Depois de tudo, eu murmurei tristeza
E solidão, e mágoa, e amargura.
Mas eu me lembro ainda da beleza
Do nosso amor, da cândida ternura.

Lembro a doçura antiga, colorida,
Do confortável conviver diário:
Essa lembrança eu vou guardar no armário
Das coisas belas que ganhei da vida.

Eu seguirei a trilha, caminhante
Feliz do amor que a vida nos compôs;
E quando o tempo nos lembrar, depois

Daquele amor, ainda que distantes,
Nós oraremos a oração do amante
E nos verás, e eu verei nós dois.

Pra onde vão os Blogs?

Sim, pois é: depois que eu me for, a minha sombra há de ficar aqui? Quanto tempo dura um blog depois que o dono se vai?

É tentador pensar num blog como uma cápsula do tempo. Como um livro. Como as garrafas de náufragos.

Quem lerá por último os meus pensamentos, num exercício atemporal de telepatia?

Cecília


Descobri este poeminha de Cecília Meireles em plena fogueira do sétimo período de 2006 (ou inferno astral, como queira). Ajudou a por muitas coisas nas suas devidas proporções:

Canção Mínima
(Cecília Meireles)

No mistério do Sem-Fim
Equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim,
E, no jardim, um canteiro;
No canteiro, uma violeta,
E, sobre ela, o dia inteiro.

Entre o planeta e o Sem-Fim,
A asa de uma borboleta.

A Linha e o Linho

Tenho especial carinho por algumas composições de Gilberto Gil. Uma delas, A Linha e o Linho, mostra duas pessoas apoiando o crescimento mútuo dentro de um terníssimo amor que se solidifica com o tempo. Quem não quer?


A Linha e o Linho
(Gilberto Gil)

É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
bordando, ponto a ponto, nosso dia-a-dia

E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O ziguezague do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa da paixão

A sua vida, o meu caminho, nosso amor
Você a linha, e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado a casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Capítulo II: Noite

(ver primeiro o Capítulo I) Kate não tinha forças para soltar-se do meu abraço, e parecia não notar o garfo de prata, que tanto me assustara, os tons de rosa multiplicados em pequenos pontos onde o metal pressionava sua pele.

A pequena Cathy assistia calada, o medo nos olhos, àquele abraço que misturava a esse mesmo medo a dor, o desamor, o desamparo, a frustração da alma violentada, a absoluta impotência diante da força muda que deveria ser a nossa protetora e não a nossa tirana. Pobre Cathy, sua pequena dor permitir-se-ia despir através daquele pobre olhar?

A fúria que desencadeara aquele momento terrível se fora; levara consigo toda a resistência da boa Kate, e deixara uma mulher preenchida por uma profunda tristeza.

Eu continuava abraçando-a, confortando-a com minhas próprias mãos claras, a voz meiga e terna, as carícias de irmã nos cabelos sedosos e no pescoço delicado, nossas almas igualmente abraçadas no torvelinho daqueles sentimentos todos.

Os soluços diminuíam, e Kate agora também me abraçava, aquecendo-se na ternura que se irradiava.

Voltei a cabeça devagar e pisquei um olho para a querida Cathy, agora minúscula em sua camisolinha de algodão, sentada meio encolhida sobre o grande balcão de mármore. Ela sentiu-se reconfortada com o meu sorriso, e suas mãozinhas ergueram-se como sonhos no ar, seus braços um laço suave de seda, transportando doces sonhos pela pele rosada dos braços de Kate, por sua cintura, a melodiosa voz um sussurro como o de um riacho, as consoantes como pedrinhas movendo-se aos poucos com a correnteza.

A chuva cessara, deixando o ar limpo como cristal polido. As filas de lâmpadas acesas entre as árvores acendiam e brilhavam à medida que eu as percebia, refletindo-se em centenas de gotículas amarelas, no chão, nas folhas e no ar.

A chegada do velho John, com a esposa e a filha, trouxe nosso mundo de volta. O velho John era um homem bom, mas era o que era: um homem. As lágrimas das mulheres eram, para ele, tão inexplicáveis como aquele orvalho lá fora: naturais, algo para merecer tanta atenção quanto o fato de chover hoje ou amanhã. As mulheres -- Ellena e a pequena Amy -- tinham todas os mesmos olhos assustados de Cathy.

Dain entrou na cozinha, com seus passos fortes e sua impressionante vitalidade, riu de Kate e das "pequenas lamentações" da esposa, acariciou-a levemente e levou os vizinhos para o pátio já quase seco, a fogueira agora iluminando sem fumaça, as alegres risadas do acordeon elevando-se com graça no ar cintilante que refletia as primeiras estrelas.

Capítulo I: A Cozinha

O milho derramava seu doce sabor amanteigado pelas frestas da tarde e Kate convidou-nos a jantar antes da chegada dos convivas. A pequena Cathy, ainda de camisola, encontrou rapidamente a sua espiga e acomodou-se sobre a grossa prancha de madeira escura que dava continuidade ao balcão de mármore da cozinha.

Kate não estava para conversa. Criticou os modos de Cathy, que instantaneamente retraiu-se mas não largou o milho. Chamou minha atenção para o fato de que "essa forma inculta de usar a língua inglesa" era insultante na Inglaterra e que eu "não devia por o rosto dentro da panela" porque isso não era higiênico. Disse que, aliás, meus hábitos não eram muito saudáveis, já que minha toalha e a de Cathy ainda estavam, molhadas, largadas sobre a cama, e minhas calcinhas estavam expostas à execração pública, estendidas no varal no fundo do espaçoso quintal. Que tipo de mulher expunha despudoradamente sua intimidade daquela forma?

Eu quis argumentar que todo mundo estendia suas roupas nos quintais, já que queriam que elas secassem, e que eu não podia tirar o milho da panela sem olhar o que estava fazendo, mas isso só alimentou a fúria de Kate, que passou a admoestar-me, o rosto vermelho de raiva, uma mão na cintura delgada e forte, enquanto a outra descrevia arabescos de prata com o garfo no ar, a voz dançando uma coreografia cada vez mais perigosa, enquanto eu me assustava sem tirar os olhos das cintilações do garfo.

Desesperada de terror, saltei para adiante e a abracei, imobilizando o brilho da prata, e as nossas respirações se fundiram, seu coração apoiou-se no meu e Kate começou a chorar, e não sei o que ela dizia, mas mal tentava libertar-se do meu abraço de camponesa, a voz agora um fio de amargura e tristeza. Eu só conseguia dizer "nós não, Kate, nós amamos você, nós amamos você", e com cuidado trouxe sua cabeça para o meu colo, e naquele abrigo a menina saiu da prisão da mulher, e Kate derramou as lágrimas represadas de sua tristeza, lágrimas demais para seus poucos vinte anos. (continua)

Outra vida, circa 1757

Quantas vezes voltam imagens de outra vida, outra vida?

Gilberto Gil fala na "Menina do Sonho", uma fada fadada a viver, com seu corpo no nada, o instante, o espaço, o abraço real da ilusão de existir.

Durante minha infância e adolescência, eu achava que a menina que eu amava era sempre a mesma, ora habitando um corpo, ora outro. Algo como se a essência do meu ideal de namorada fosse uma personalidade que vagasse pelo mundo, e eu tinha que ter a habilidade e a sutileza necessárias para reencontrá-la a cada migração (algo parecido com os monges tibetanos buscando as pessoas que seriam as sucessivas reencarnações de Buda). Existem vidas sucessivas? Vidas paralelas?

Outro dia acordei com uma lembrança tão viva na memória que só poderia tratar-se de um evento real. Descrevo-o como posso nos posts A Cozinha e Noite, neste blog. Esqueçam a forma literária. Esses escritos datam de muitos anos, quando a prosa de Clarice, repleta de vírgulas, me encantou pela primeira vez. Apreciem o relato.