domingo, 23 de fevereiro de 2014

Linguagem, ideias e amizade

Quase ninguém mais utiliza recursos de coesão por substituição e referência – pelo menos não no texto do dia-a-dia, nas conversas e, muito menos, nos veículos mais populares de disseminação da cultura. Lendo sobre o assunto, lembrei-me da letra de “Acontece”, de Cartola:

“Se ainda eu pudesse fingir que te amo
Ah, se eu pudesse!
Mas não quero, não devo fazê-lo
Isso não acontece”.

Como é do conhecimento público, Cartola era um sambista pobre, morador da favela da Mangueira, que só estudou até o 4º ano primário. E que, não obstante, inseria elementos de coesão textual por referência e substituição em seus sambas. Cartola nasceu em 1908 e morreu em 1980. Compôs canções inesquecíveis a partir de 1930, gravando a maioria em disco entre 1965 e 1980.

Por qualquer razão, observei que há uma referência importante nessas datas: elas abrangem o período dos presidentes militares.

Eu nasci em 1961 e lembro que era norma, durante toda a minha infância, esperar e entrar no ônibus em fila, cedendo o lugar aos mais velhos e às mulheres, fossem essas mais velhas ou não. Nessa época ainda acreditava-se que quem fosse capaz de fazer alguma coisa, tinha a obrigação de fazê-la; e, assim, além do quesito gentileza, as crianças trabalhavam quando não estavam estudando ou brincando -- e ninguém era criança depois dos 14. Pelo que sei não havia escola para todos, mas havia trabalho remunerado para quem o quisesse e existia o emprego de “contínuo” para quem não tivesse maiores qualificações, como era o meu caso aos 14 anos e o caso de Cartola aos 50. As pessoas vestiam suas melhores roupas para ir “ao comércio” e usavam uniformes limpos e bem passados para frequentar as aulas.

Tudo isso desapareceu subitamente quando eu já estava no colégio (atual ensino médio), em 1976, durante o período mais repressor do regime militar, em plena vigência do Ato Institucional nº 5, o qual, dentre outras coisas, deu aos generais poderes absolutos (absolutos) sobre cada cidadão brasileiro, revogou a Constituição, fechou o Legislativo e proibiu a manifestação sobre qualquer assunto de natureza política.

Nesse período, como todos sabem, era comum jornalistas cometerem suicídio nas delegacias de polícia. Livros foram banidos, bancas de revistas foram explodidas, jornais e livrarias foram fechados; músicas, peças de teatro e a expressão do pensamento foram censuradas ou proibidas, enquanto escritores, intelectuais, cantores e compositores de música popular foram violentamente impedidos de produzir. Um evento que, guardadas as proporções, remete ao incêndio da biblioteca de Alexandria. No caso do Brasil a perda terá sido muito menor; ainda assim, uma perda irreparável.

(Abre parênteses: haverá quem defenda os anos de chumbo, reafirmando que seríamos “outra Cuba”, que teria havido mais mortes sem a intervenção das FFAA, etc. Para outros palpites do gênero, ver os comentários dos leitores na Folha de SP quando se publica qualquer menção à palavra “Ditadura” no jornal. Fecha parênteses, porque este texto não trata de política.)

Em resumo: a ditadura promoveu a destruição de um volume expressivo do registro cultural brasileiro entre 1964 e 1980 e inibiu violentamente a produção de cultura durante vinte e cinco anos. Pode-se concluir que um evento de tal magnitude certamente terá influenciado o padrão cultural do brasileiro comum.

O número de escolas aumentou bastante, proporcionalmente inclusive, em relação ao que existia em 1976. Entretanto, a língua portuguesa atualmente falada e escrita numa pluralidade de meios no Brasil é um amálgama de gramática rudimentar e vocabulário restrito, improvisada e afastada da forma culta: um pidgin da língua utilizada por Cartola, que cursou até o quarto ano primário no século passado. Surgiu o “funk carioca”, ruído de acasalamento que nem é funk e nem é carioca e que, pra piorar, acabou tombado como patrimônio cultural do Rio, antiga capital cultural do país. Importou-se o gerundismo, jargões e palavras de ordem que tentam disfarçar o analfabetismo funcional e a indigência intelectual. Vê-se e ouve-se a dilapidação da língua em outdoors de universidades, em placas de sinalização, nos pronunciamentos de autoridades, na música, no teleatendimento e na produção literária.

É notória a destruição causada pelos exércitos, quando controlados por extremistas políticos ou por seitas religiosas, ao tomarem de assalto sociedades e povos. Por vingança, por omissão e, geralmente, na impossibilidade de reconhecerem cultura que não seja a sua própria, destroem vezes seguidas o patrimônio intelectual e cultural da Humanidade, retardando continuamente a ascensão de homens e mulheres a um patamar que se possa chamar, sem ressalvas, de civilizado.

(Abre parênteses: tenho amigos que defendem e apregoam o ideário do extremismo de direita ou do extremismo de esquerda, fechando os olhos a tudo que não se alinhe às suas respectivas doutrinas. Busco, por vezes, abrir-lhes frestas que lhes permitam mirar-se num espelho ou ver o outro lado do muro, não raro desencadeando reações apaixonadas que já me obrigaram a batalhar com fé em defesa da amizade que existe para além dos credos. É que amigos são joias raras. Por um amigo chego a arriscar a amizade. Fecha parênteses.)


A língua é dinâmica, atualiza-se constantemente para adaptar-se a cada nova realidade. Mas somente em uma sociedade culta é capaz de manter sua beleza, objetividade e leveza enquanto evolui. 

Leveza da qual discordava Olavo Bilac, entretanto sem deixar de apoiar meu texto:

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Citando Fernando Pessoa, Caetano Veloso clama por novas palavras, cores e nomes:


Entre a energia da renovação e a engenharia da língua, tenhamos a ambas!, por que não?