quinta-feira, 8 de junho de 2017

Diretas Já

Quando cheguei a Brasília, em 1997, impressionou-me a facilidade com que o idioma local, emprestado em boa parte do linguajar do interior de Goiás, renomeava praticamente toda a culinária nacional, acidentes geográficos, interjeições e a gramática. Eu temia, por exemplo, pedir uma cerveja e receber, sei lá, um carrinho de mão.
Vinte anos depois, a política nacional não apenas absorveria essa liberdade metamórfica do cerrado como a potencializaria, produzindo uma espécie de obsessão pelo eufemismo e pelo que Welles chamou de "duplipensar".
O exemplo mais atual desse fenômeno é a campanha por eleições diretas para presidente da República em 2017. Buscando capitalizar a grife que nomeou o movimento aglutinador da sociedade brasileira em 1984 (aliás, por Tupã!, parece que não há como negar a presença de Orson Welles em nossos kafkianos esforços por democracia), os partidos políticos de esquerda gritam "diretas já" em showmícios que estariam superlotados não fosse a onipresença das bandeiras da CUT, do MST, do MTST, do PT e das camisetas do Che.
“Diretas já” não é algo possível, devido ao impedimento constitucional. Assim, busca-se mudar nossa tão jovem e já tão esparadrapada Constituição Cidadã, para que permita "votação popular caso os cargos de presidente e vice-presidente fiquem vagos nos três primeiros anos de mandato". É muito provável que essa PEC tivesse outra redação se a crise atual ocorresse no primeiro ano do mandato, ou no segundo. Embora seja consenso universal que, seja quem for o presidente "indireto" a ser escolhido pela Câmara, será o pior possível, o casuísmo da "PEC das Diretas" é evidente. Para complicar, caso o mandato do atual presidente venha a ser cassado, a aprovação dessa PEC exigirá uma outra PEC -- ou um exercício de hermenêutica do STF -- que altere o Artigo 16 da Carta Magna e confira à primeira PEC aplicabilidade imediata.
Todo esse esforço deságua no seguinte: neste momento, ninguém fez campanha e o único possível candidato a presidente da República que -- menos por seus méritos que por outras razões -- tem sua marca exposta diariamente na televisão e nos jornais é Lula. Diferentemente dos outros possíveis candidatos, Lula tem uma base fiel, imune ao noticiário. Seria uma eleição praticamente sem concorrência, até porque o ex-presidente precisa desesperadamente de imunidade contra as primeiras instâncias da Justiça, e por ela é capaz de mover toda a montanha de recursos da Odebrecht, perdão, do Erário, digo, do partido, ora espalhados pela Suíça, Cayman, Panamá, Cuba, Angola, Atibaia e outros lugares improváveis, tornando imbatível em múltiplas instâncias a sua já forte candidatura.
“Diretas Já”, hoje, é apenas um eufemismo, um candanguês, um duplipensar, para “Volta, Lula”. O fato de o “movimento” disfarçar-se com o nome da grife de aglutinação nacional contra o regime militar já constitui motivo para alguma desconfiança; mas o disfarce tem sido a regra no discurso das esquerdas desde muito antes que as brechas não sanadas nos caóticos discursos de Dilma Rousseff começassem a ser vistas em ferrenho combate aos fatos. O “diretas já” de 2017 não passa de mais uma tentativa de recriar a realidade, pondo em prática o princípio de que o critério de certo ou errado, na política, é o êxito -- no caso em tela, um êxito pessoal, sindical, partidário.