quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Delicada

Afrouxando seu abraço gelado, a água acariciava-me por inteiro à medida que eu avançava lentamente para a superfície, por entre asteróides luminosos que subiam dos seixos espalhados no fundo do rio, os pulmões ansiosos por ar, os olhos ansiosos por mais beleza.

Na pequena trilha, a luz, caindo do céu aos jorros, estatelava-se de encontro às folhas mais altas e respingava para todos os lados; e, se não era suficiente para aquecer minha pele, inundava minha mente com cores, formas, texturas, perfumes e sons, ao estalar, metamorfosear-se, roçar-me, recender e mimetizar a alma do planeta de encontro à minha.

Bendita seja a Terra, que me afaga como se tanta grandeza não fosse nada.

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És menina do astro sol
És rainha do mundo mar
Teu luzeiro me faz cantar
Terra, Terra és tão estrelada

O teu manto azul comanda
Respirar toda criação
E depois que a chuva molha
Arco-íris vem coroar

A floresta é teu vestido
E as nuvens, o teu colar
És tão linda, ó minha Terra
Consagrada em teu girar

Navegante das solidões
No espaço a nos levar
Nave mãe e o nosso lar
Terra, Terra és tão delicada

Os teus homens não tem juízo
Esqueceram tão grande amor
Ofereces os teus tesouros
Mas ninguém dá o teu valor

Terra, Terra eu sou teu filho
Como as plantas e os animais
Só ao teu chão eu me entrego
Com amor, firmo tua paz

(Milton Nascimento e Marcio Borges, "Estrelada")

Fora do meu Lar

Fora de casa o cheiro de lar me abraça com sua melodia matinal, lembrando-me de que eu gosto muito de lar.

Ficar solteiro é o caralho, eu gosto mesmo é de ser dois, três, mil, dentro da minha casa transformada em lar, em família, em doçura de vida em conjunto, refratando-me em duzentas mil cores, em milhões de suaves sons, na tranquilidade de me dividir.

Pra que eu sirvo, só?

Esta manhã vai ser foda.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Sweet Dreams

Sweet dreams are made of these
Who am I to disagree?
I travel the world and seven seas
Everybody is looking for something

(Annie Lennox, "Sweet Dreams")

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Segredo

Desde aquele carnaval ela sentiu uma necessidade enorme de ter segredos para mim. Tudo, mesmo as coisas mais banais, tornaram-se segredos impenetráveis. Soube hoje, por acaso, do casamento, com alguns dias de atraso... Pelo jeito a necessidade persiste, embora as outras coisas já tenham morrido. Isso foi somente mais uma deselegância. Eu vou acabar me habituando.

Pergunta: Isso é algum tipo de receio? De mim??? Por quê???

Pergunta: o que eu tenho a ver, agora, com a vida dela? (Opa, isso não é pergunta que eu faça, apenas uma previsão da pergunta mais natural do mundo, e que ser-me-ia feita muito naturalmente.) Nada. Eu só fiquei constrangido por haver falado com os esposos por esses dias e não os haver felicitado, o que poderia passar por uma deselegância da qual eu sou incapaz. Credo, fiquei alérgico a mal-entendidos, má interpretação, má fé obscura e má vontade.

Liguei e parabenizei, mas não como eu teria gostado, porque o meu mal-estar não me deixou dizer o que eu queria ter dito, de verdade: que eu desejo toda a felicidade e que as coisas boas suplantem, suplantem, suplantem, as coisas que não forem as coisas boas no novo casamento. Ela provavelmente não iria acreditar, mas eu teria dito exatamente isso. Eu sou assim. Não é segredo.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Tu + 10

A saída do gigantesco espaço do teatro é complicada, mas as ruas são agradavelmente iluminadas no caminho.

Distraído, perco a entrada de casa e sou forçado a tomar o retorno pouco usado pra voltar. Como sempre, está escuro e me preocupo se estou fazendo algo errado. Aproveito e troco o dinheiro pra ti, e me deves R$ 55.

Ao estacionar, vejo que vocês haviam descido do carro antes mesmo que eu fizesse o retorno e, no portão da frente, meus 55 estão postos delicadamente num canto da passagem, onde eu possa vê-los.

Tua oferenda aos anjos está sobre o muro largo; cuidadosamente recolho a vela apagada pela chuva suave, juntamente com o meu pente rosa que esqueceste junto.

O filhote, ardilosamente escondido na penumbra da cadeira da varanda, me surpreende com uma risada boa, enquanto queixa-se de que dá uma preguiça danada enfrentar as dificuldades de entrar pela porta, esperando que eu o pegue no colo e o ponha na cama.

Sais de casa rindo ao meu encontro, enquanto te admoestas por haver esquecido a oferenda e avisas ao filhote que, por isso, terão de fazer a oferenda de novo, em redenção.

Vestes somente a tua pele luminosa no corpo de fada, cintilando no ar à luz das estrelas órfãs da lua e, se não me amas, tampouco me desprezas; e recebes sem desdém o meu carinho, meus beijos e até me tomas como porto seguro onde podes dizer, como se isso fosse algo ruim, que hoje és Tu +10, sabendo que eu vou dizer que estás, por isso mesmo, ainda mais linda!

Imagina, até te agradeço por tudo, numa síntese da cerimônia das pétalas, que ensaiei no dia D mas que não pudemos realizar...


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Luz e Mistério

Oh! Meu grande bem
Pudesse eu ver a estrada
Pudesse eu ter
A rota certa que levasse até
Dentro de ti

Oh! meu grande bem
Só vejo pistas falsas
É sempre assim
Cada picada aberta me tem mais
Fechado em mim

És um luar
Ao mesmo tempo luz e mistério
Como encontrar
A chave desse teu riso sério

Doçura de luz
Amargo e sombra escura
Procuro em vão
Banhar-me em ti
E poder decifrar teu coração

És um luar
Ao mesmo tempo luz e mistério
Como encontrar
A chave desse teu riso sério

Oh grande mistério, meu bem, doce luz
Abrir as portas desse império teu
E ser feliz

(Beto Guedes e Caetano Veloso, "Luz e Mistério")

domingo, 14 de setembro de 2008

Nothing Gold Can Stay

Nature’s first green is gold,
Her hardest hue to hold.
Her early leaf’s a flower;
But only so an hour.

Then leaf subsides to leaf,
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day
Nothing gold can stay.

- Robert Frost, "Nothing Gold Can Stay".

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Em defesa do relativismo suave

Pela segunda vez "chupo" um artigo de outro blog -- e vou fazê-lo sempre que o texto valer a pena, ora bolas. No caso, uma bem-humorada defesa do relativismo, esse inimigo das consciências -- e também da insônia.

Quem escreve é João Pereira Coutinho, colunista da Folha. Degustem.

Em defesa do relativismo suave

O problema do mundo é não ser um pouco mais relativista. Eu sei, eu sei: o relativismo é mau, dizem, porque a idéia de que os valores dependem de meras escolhas individuais, sem nenhuma justificação externa ou racional, é uma fraqueza epistemológica e ética da maior gravidade. Fato. Mas eu falo de um relativismo ligeiro, um relativismo banal, o relativismo das coisas menores. Como um tempero que se coloca sobre o prato da vida, só para dar algum sabor mortal a tudo o que fazemos e sentimos. É o relativismo suave que ensina que nada tem uma imporância tão absolutamente esmagadora quando o fim é certo e o esquecimento também.

Lembro tudo isso com notícias que leio na imprensa portuguesa. Nos últimos dias, soube que 32 mulheres foram assassinadas em 2008 por seus namorados ou maridos. Existem cenários macabros de homens que apontam uma arma e disparam sem pestanejar em plena via pública. O resto é igualmente macabro: estrangulamentos, espancamentos, envenenamentos. O diabo a quatro. Motivos? Passionais, sempre passionais: o homem descobre, ou suspeita, que a mulher não é casta. E num gesto de loucura, comete a loucura.

E então recordo uma conversa que tive uns anos atrás com um amigo, em São Paulo, e o relato que ele me fazia de um conhecido jornalista que entrara em cenário idêntico: descobrira que a namorada, mais jovem, se afastara dele para procurar uma "nova vida", como se diz nas telenovelas; e ele, de cabeça perdida, incapaz de aceitar a rejeição, pegou na arma e fez o que fez. Arruinou a vida, a carreira, os amigos, a família, e etc. etc. etc.

Ouvi a história e perguntei aos meus pobres neurónios se eu seria capaz disso: amar uma mulher ao ponto de a matar por despeito. E a resposta, toc toc toc, é negativa. Tudo por causa de meu relativismo suave, que me acompanha dia após dia como um animal de estimação. Sim, tenho minhas fúrias, como qualquer pessoa racional. E existem momentos de um desespero tão profundo, e tão medonho, que chorar é um luxo. Mas mesmo quando o demónio se intromete na pacatez dos meus dias, existe um lado de mim que ri dele. Como se o espírito deixasse o corpo e, planando sobre a carcaça, contemplasse o absurdo da minha condição. O absurdo da condição humana. E uma voz invisível segreda-me ao ouvido: será que vale a pena, companheiro? Será que vale a pena tudo isso quando tu estarás morto no futuro médio? E, depois da voz, vem a imagem: como num filme de Bergman, eu, velho e morto, em caixão aberto.

O relativismo liberta-nos para fazer o mal, como acreditava Dostoiévski? Não creio. Em doses temperadas, o relativismo é um convite para não fazermos o mal. Ele esvazia o nosso patético ego como uma agulha que fura o balão de uma criança. E ele é sobretudo útil em matéria de amor: somos amados, magoados, atraiçoados. Acreditamos que, depois do abandono, teremos uma dor inultrapassável, que se vai prolongar pelos séculos seguintes.

Mas a verdade é bem mais triste e, paradoxalmente, bem mais feliz. Tudo passa. A dor vai diluindo-se em tristezas menores, que ficam como o pó esquecido nos cantos da casa. E certo dia descobrimos que o tempo cobriu tudo com invisíveis mortalhas; e o passado é o porto de onde a nossa embarcação já se afastou há muito. Vemo-lo ao longe, por entre a neblina. Mas não há regresso.

Desesperado leitor: se achas que a dor de hoje te autoriza a tudo, lembra-te que és nada e que a tua vida será nada. E festeja essa certeza com a alegria sincera dos náufragos resgatados.

João Pereira Coutinho, 32, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.E-mail: jpcoutinho@folha.com.br Site: http://www.jpcoutinho.com