domingo, 5 de julho de 2009

Arte Moderna

Nesta semana fui assistir a "A Casa" (bela adaptação d´"A Casa de Bernarda Alba", de García Lorca), encenada por grupo da Faculdade Dulcina de Moraes. Montada na ótima Sala Plínio Marcos, da Funarte, a peça conta com um elenco de talentos notáveis, respeitável direção, músicos e cantores de indiscutível competência, contra-regra e iluminação profissionais. Aplaudi de pé, junto com a sala inteira.

Corte para "O Beijo No Asfalto", também parte da IX Mostra Dulcina. Exibida na sede da própria Faculdade, "O Beijo" conta com todas as desvantagens possíveis em matéria de espetáculo, e ainda cria outras. Pra começar, a sala onde é exibida só comporta trinta pessoas, como informa o release e o cordial recepcionista que distribui os "convites" na calçada do Conic. Quando cheguei ao local a primeira sessão já estava esgotada, mas garantiram aos presentes que em 40 minutos começaria a segunda sessão. Enquanto isso, disse o alegre host, nós poderíamos participar da vernissage em andamento no primeiro andar. Segundo ele, o buffet estava bom. E estava mesmo, guardadas as devidas proporções. Já a exposição... Eu nem gosto de falar de arte moderna, já que, pra mim, Juan Miró devia receber acompanhamento de alguma professora primária pra aprender a fazer garatujas. Mas fui ver assim mesmo, já que não tinha nada melhor pra fazer e a esperança é a última que morre. Pois a tal vernissage espancou minhas esperanças até o nível de UTI. Coisa resistente, a esperança. No tal primeiro andar vimos a apresentação silenciosa de um bailarino-performático aos pulinhos e bailados pela sala, completamente sem simancol. Tinha uma luminária-mosquitéiro por trás de um lençol de chita. Tinha uns quadrinhos feitos de caixinhas vazias de geléia de hotel viradas pelo avesso; uma mulher (de verdade) costurando um enorme manifesto-faixa-de-chita que não entendi o que dizia; um ensaio fotográfico do tipo doméstico, onde apareciam algumas mulheres estáticas e um homem que mudava de traje a cada foto, concluindo por ficar nu, para horror das mulheres até então estáticas; e mais algumas coisas "criativas"que achei melhor não olhar de perto. Temendo ter meu senso crítico abalado se me demorasse no lugar, fugi para o saguão para esperar pela segunda sessão d´" O Beijo". Pra meu azar, no saguão dei de cara com uma instalação composta por duas tíbias verdadeiras de boi (boi tem tíbia?), do tipo carniça, amarradas por arame farpado e pendentes do teto por uma singela correntinha de prender vira-lata, sob a qual havia uma poça de sal grosso. Nem vou citar as demais instalações, porque isso aqui não é blog de horrores.

Bem: voltamos a esperar pela segunda sessão d´" O Beijo". Tínhamos duas opções: o calçadão do Conic ou o hall da Dulcina. No hall não deu, pois estava infestado por moças em adolescência permanente, cujos hormônios pareciam impedir que dissessem alguma coisa que não fosse aos gritos. Esperamos do lado de fora, aturando o pessoal do cigarro. Após cerca de uma hora e meia de eternidade foi anunciado o próximo início da segunda sessão, o que espicaçou ainda mais os hormônios das ditas moças: em segundos o status do ambiente saltou de desagradável para risco de agravo à saúde. Enfim, após ter decidido, pela centésima-nonagésima vez, que ia ficar pra ver a peça, descemos para o porão do Conic. No estreito corredor subterrâneo sem janelas e sem ventilação, um ator fumava furiosamente ao redor da fila, enquanto balbuciava em estado de choque um resumo do enredo da peça ("mulher atropelada" e não sei o quê mais). Uma profusão de panfletos semiqueimados no chão formava um cenário digno da Cinelândia depois de uma CowParade fantasma. Realista, fazia a gente imaginar o cheiro de urina e criolina e querer sair dali o mais depressa possível. Complementando o clima, uma luz vermelha fantasmagórica por trás de um biombo iluminava o local, acompanhada de um rangido arrigobarnabístico que saía de alguma caixa de som em algum lugar. Enquanto isso, um sapatão (lésbica é lésbica, mas sapatão é sapatão) adolescente dentro de um grupo atrás de mim fazia questão de perguntar aos coitados dos amigos se eles sabiam o que mais irritava a ela. E, como o grupo não parecia muito preocupado em adivinhar, o sapato ficava repetindo que era tesão reprimido. Senti-me transportado às festas do Piniqueiral promovidas pelo DCE da UFPb em 1980. Tem coisa que, definitivamente, não evolui. Mas, prossigamos no corredor mal-assombrado: pra entrar na sala de exibição tínhamos que assinar um caderno lá, a pedido de uma sorridente hostess. Assinei e me esgueirei pela ante-sala mais kitsch que já vi na vida, por entre um emaranhado de faixas plásticas zebradas de amarelo e preto, dessas usadas pela polícia americana pra fechar locais de homicídio nos filmes. Tenho certeza de que havia um retrato de Kafka, se borrando de rir, em algum lugar. Por fim, eventualmente chegamos à porta da sala de exibição, onde uma outra hostess olhou nossos "convites" (números 2 e 3) e disse que os nossos lugares eram em pé num canto de parede perto da entrada, atrás de umas oito pessoas que já se espremiam ali. De cara notei que não ia caber nem meu pé esquerdo, e fui pra outro lugar qualquer. Isto é, tentei ir, já que a sala, abarrotada de móveis enormes, só comportaria trinta pessoas na imaginação de alguma mente doentia. Dez ficariam quase confortáveis. Quase todo mundo estava de pé na sala minúscula, sem ventilação nem saída de emergência, o resto apinhado em alguns dos monstruosos sofás e poltronas disponíveis, ironicamente numerados.

Caro leitor, se você acha que este post é um trabalho de ficção, vá assistir ao "Beijo", mas não diga que não avisei.

Enfim: pra mim foi demais. Em protesto contra tantas agressões ao bom senso, à arte dramática, ao consumidor, aos olhos, aos pulmões e aos ouvidos, dei meia-volta sem ver a peça e devolvi o ingresso à sorridente hostess. Refiz o caminho do labirinto para a superfície e dei de cara com o também incansavelmente sorridente primeiro host, que me perguntou alegremente se eu tinha gostado do espetáculo. Como o pobre homem não merecia o que eu tinha a dizer, limitei-me a dizer que "não" e fui embora do Dulcina jurando nunca mais voltar.