quinta-feira, 21 de junho de 2007

As Vozes da Voz

O Criador nos fala continuamente através de Sua obra. Uma de Suas vozes, posta no meu caminho por Sua infinita bondade, me mandou uma mensagem por e-mail, contendo uma citação que, parece, é de Fernando Sabino. A notação léxica corre por minha conta.

"De tudo ficaram três coisas:
A certeza de que estamos começando;
A certeza de que é preciso continuar; e
A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar.
Fazer da interrupção um caminho novo;
Fazer da queda um passo de dança;
Do medo uma escola,
Do sonho uma ponte,
Da procura um encontro;
E, assim, terá valido a pena existir".

Fernando Sabino, do livro "Encontro Marcado"
(*12-10-1923 +11-10-2004)

terça-feira, 19 de junho de 2007

A verdade é mais prática do que a mentira

Achei tão boa que resolvi copiar para este modesto blog uma bem-humorada crônica do jornalista Fernando Bonassi, em que o autor trata da praticidade da verdade e de matérias afins. Extraída do livro "As Melhores Vibrações", de Fernando Bonassi. Tim-tim.

Você acredita no que ouve?

Costuma-se acreditar por aí, pelo menos da boca pra fora, que verdade é melhor que mentira... Isso, é claro, supondo que todos nós saibamos sempre o que é uma coisa e outra. Tentando o impossível, isto é, não entrar no mérito moral de um lance como esse, diria que a verdade é mais prática do que a mentira.

Explico: o bom mentiroso, por mais inexperiente que seja, sabe que mentira requer produção. Boa mentira tem drama, surpresa, urgência, emoção, colorido. A verdade nem sempre precisa de tanto brilho para ser aceita.

Mas espere: brilho também não é tudo. Como a clássica reportagem jornalística, a mentira precisa responder aos quesitos "quando", "onde", "como" e "por quê" de forma limpa, clara e direta.

Qualquer hesitação ou imprecisão desmonta o mentiroso, por melhores que sejam suas intenções. Intenções à parte, a verdade pode até ser mais prática ou mais honorável que a mentira, mas não dá o mesmo frisson.

Trocamos um bom e velho jogo da verdade pela história mais fabulosa, desde que ela nos tire da vida besta em que nos colocamos no dia-a-dia. Por essas e outras, o "álibi-fone", instalado no Hoff Bar, dá o que falar, embora melhor seria dizer "dá o que ouvir". Os proprietários do lugar instalaram uma cabine especial que permite ao usuário dar as suas "boas desculpas" embaladas por uma sonoplastia de alto nível.

Trata-se de uma cabine telefônica com tratamento acústico, de forma que a eventual bagunça de fora não invada o incauto ou incauta transgressora (que malandragem não é patrimônio masculino).

Ali, ele ou ela pode sacar o celular e escolher entre as quatro opções de sons de fundo disponíveis no momento: trânsito, obras, metrô e parque, que os usuários apelidaram carinhosamente de Ibirapuera. Esse último, aliás, o mais arriscado: há pássaros cantores demais para as áreas verdes do pedaço.
Eu disse "disponíveis no momento" porque, mês a mês, o repertório é trocado de forma a dar margem a desculpas sempre inéditas. Além do clássico trânsito, sempre útil na megalópole, o usuário, no mês que vem, poderá dispor de, por exemplo, "mar", "escritório" e, ainda em estudos, "guerra".

Não sei muito bem como a "guerra" pode ajudar o mentiroso local, mas quem precisa de mais tempo longe dos olhares da parceira ou do parceiro pode muito bem dizer que foi ao Líbano ou Colômbia, sei lá.... Cada um inventa o que melhor lhe convém ou, como já dissemos, o que mais tesão lhe dê.

Por essas e outras, senhoras e senhores, muito cuidado com o que andam ouvindo por aí, especialmente com aqueles prosaicos ruídos ao fundo das ligações urgentes de vossos amores.
Quer dizer: quem confia amigo é... mas também pode ser corno.

"As Melhores Vibrações"
Autor: Fernando Bonassi
Editora: Publifolha
Páginas: 152
Quanto: R$ 14,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Depois da tempestade

Aquela p**** de navio navegou, arquejou com as ondas, enfrentou galhardamente tempestades e calmaria; fome, sede e peste se fizeram presentes, junto com os mares azuis, noites estreladas, brisas doces, gaivotas, belos sóis e magníficas luas, festas, alegrias, novos portos, novas rotas, novos acréscimos à tripulação.

Um dia o navio estava sem pintura, velas rasgadas, tábuas soltas, infiltrações. Como aquele navio, justamente aquele navio, ficou assim? Onde estavam o amor, a alegria, o respeito, a esperança, a bondade, a compreensão, o apoio, o tesão, o afeto, o carinho, o ouvir, o dar, o receber?
Como esquecer aquele navio, quando o cheiro do mar é parte do ar; suas bandeiras enchem de cores a paisagem árida do inverno de Brasília; suas tábuas queimam na fogueira do frio das noites de frio; os mapas são os mesmos, os mares são os mesmos, e em toda a parte está o navio, que habita minha cabeça, meu sangue, minha risada, minhas mãos?!

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Nothing Gold Can Stay

(Robert Frost)

Nature’s first green is gold
Her hardest hue to hold.
Her early leaf’s a flower;
But only so an hour!

Then leaf subsides to leaf,
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day
Nothing gold can stay.

Tempo

"Foi o tempo que passaste com a tua rosa que a tornou tão importante".
. . . . . . .

O Lado Negro da Força?

Eu sei, tá fora de moda citar Èxupèry (acima). Mas meu tempo um dia vai acabar, por isso estou abandonando meus paradigmas e as limitações dos critérios usuais pra, com calma, ver a outra banda da Terra e lançar luz sobre o lado escuro da Lua.

Os melhores dias

É difícil aceitar que uma fase acabou para sempre e não voltará mais. Difícil imaginar que vamos ser felizes novamente, findos aqueles que, vistos de hoje, parecem ter sido os melhores dias das nossas vidas.

Os melhores dias das nossas vidas são todos os dias. Hoje é o melhor dia. Agora é a melhor hora. Isso vem escrito em todos os PPS bonitinhos que entopem nossas caixas de e-mail, mas a gente não acredita. Parece piegas demais, simples demais. Pois é simples assim.

É uma bênção o que temos hoje e que, certamente, algum dia não teremos mais. A boa lembrança será saudade, um quarto bonito arrumado na memória. E a nova felicidade estará logo ali, embaixo do nosso nariz, quase impossível de ser vista, até que tropecemos nela.

terça-feira, 12 de junho de 2007

O amor

"L'amour, c'est quand la différence ne sépare plus". (Jacques de Bourbon-Busset)

Grampo

Hoje cedo, numa época em que o Grande Irmão anda à cata de bruxas, recebi um telefonema misterioso, mudo, de um número ainda mais misterioso: (61) 9942-3024. Desligaram sem falar nada. Dei retorno e, após o primeiro toque, entra uma gravação, de má qualidade e baixo volume, de um sinal de ocupado. Antes que o sinal de ocupado acabe, ouve-se um clique e o som termina. Insisti mais algumas vezes, e aí começou a aparecer a gravação padrão (sem o nome do dono da caixa e sem mensagem pessoal) para deixar recado. Essa mensagem sumiu mais tarde para ceder lugar novamente ao tal sinal de ocupado. Mesmo considerando a possibilidade de paranóia social, eu diria, como Holmes, que todas as evidências são favoráveis à hipótese de o meu telefone ter sido finalmente grampeado.
. . . . . . . . . . .

Outro dia ouvi, pelo rádio (rádio comum, FM, e não rádio de escuta clandestina, caramba!) dois deputados dizendo duas coisas diferentes: o primeiro deputado dizia que não atenderia mais o telefone, porque se algum eleitor ou qualquer desconhecido ligasse dizendo que ia mandar uma caixa de bombons ele poderia ser preso. Em entrevista à CBN, enquanto eu tomava uma ducha, outro deputado disse que "a corrupção está lá fora (do Congresso), pois aqui não fazemos licitação e não contratamos empreiteiras". Eis o ângulo. O demônio é você, eleitor.

Bênçãos

Eu sei quanto tenho. Agradeço todos os dias pelas incontáveis dádivas que recebo, até por aquelas que nem percebo. Amo a Deus com todas as minhas forças e seria incapaz de um ato de ingratidão diante da quantidade imensa de bênçãos que o Universo derrama sobre mim todos os dias, desde que nasci. As lágrimas de saudade também são uma bênção; então hoje vou-me permitir algumas delas sem culpa. O resto é a mais pura alegria.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

"Let's Fall In Love"

(Ted Koehler and Harold Arlen)
Dedicado a todos os namorados neste 12 de junho.

I have a feeling, it's a feeling
I'm concealing, I don't know why
It's just a mental, sentimental alibi

But I adore you
So strong for you
Why go on stalling
Our love is calling
I am falling
Why be shy?

Let's fall in love
Why shouldn't we fall in love?
Our hearts are made for it
Let's take a chance
Why be afraid of it

Let's close our eyes and make our own paradise
Little we know of it, still we can try
To make a go of it

We might have an end for each other
To be or not be
Let our hearts discover

Let's fall in love
Why shouldn't we fall in love
Now is the time for it, while we are young
Let's fall in love

We might have an end for each other
To be or not be
Let our hearts discover
Let's fall in love
Why shouldn't we fall in love?

Now is the time for it, while we are young
Let's fall in love

domingo, 10 de junho de 2007

Valentine's day

Vem aí um Dia dos Namorados, meu primeiro sozinho em décadas. Não sei mais paquerar, encantar, atrair, namorar. Aliás, nunca soube. Sou um paquerador desastrado. Sou tímido, o que é a morte da paquera. Em todas as vezes em que namorei, com uma única exceção, a iniciativa coube à moça. Já viu?

Convidar alguém pra jantar, cinema ou algo assim, será pra mim como se fosse a primeira vez em que faço isso. As pessoas a quem eu poderia convidar não me conhecem o suficiente ou mesmo nunca me viram antes. Mas quer saber? Vou convidar.

Aguardem a notícia. Se eu chegar aqui sorrindo amarelo, finjam que não estão vendo.

Amar

No final de agosto de 2006 deixei um scrap numa comunidade do Orkut intitulada "Amar é Foda". Era assim que eu via o amor então:

Dizer que "amar é foda" é dizer muito pouco

Primeiro: Um sempre ama mais do que o outro. Ama diferente do outro. Geralmente tem outros valores, outra visão do mundo, outra interpretação das palavras, dos gestos e até das omissões. Ou seja: a mensagem pode não chegar lá, ou, pior, pode chegar ao contrário. E isso acontece dos dois lados.

Segundo: você pode simplesmente não significar nada para o seu amor!!!! Pior ainda, deixar de significar. Que tal o seu amor um dia virar pra você e dizer na sua cara, em alto e bom som: "amo você, acho que você é uma pessoa maravilhosa, tudo que você faz é maravilhoso, mas eu quero mais, quero cruzar a ponte"??

Terceiro: Amar é foda porque pode lhe deixar cego(a), surdo(a) e mudo(a), ou seja: sem amor-próprio. Você faz tantas concessões (porque ama, imagine!) que perde o respeito da pessoa a quem você ama. Aí fodeu geral. Seu amor lhe faz de gato e sapato, até sem querer, e tá se lixando.

Quarto: amar não devia ser foda. Devia ser sereno, amigo, leal, verdadeiro, seguro, confortável, feliz, bonito, transparente. Mas nem tudo é perfeito. Melhor amar do jeito que der. Foda mesmo é não amar ninguém.

Grande balanço

Lembretes de vários gumes para mim mesmo:
  • a vida ainda não acabou;
  • a luta também não;
  • não estou sequer perto da praia;
  • tenho metas;
  • tenho coração;
  • amo muito, mas me amo também;
  • tenho responsabilidades para com as pessoas;
  • tenho responsabilidades para comigo;
  • fugir das tarefas não elimina as tarefas, e elas não se executam sozinhas.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Caminhada no Parque

Outro dia fui surpreendido por um grupo de alunos de Educação Física de uma renomada faculdade de Brasília, enquanto dava meu passeio pelo parque. Disseram que iam me medir, testar, etc., tudo de graça. Ok, de graça eu aceito.

Depois de me submeter a uma bateria de uns doze exames, o formando vaticinou: caminhada light, tipo passeio, como eu fazia, tinha um bom efeito psicológico, relaxante, mas era necessário aumentar o ritmo dos meus exercícios, para aumentar o batimento cardíaco, não sei bem pra quê.

Ah, caminhada não é exercício, é terapia. O bom de caminhar está na sensação do vento passando pelas orelhas, nos cheiros e sons do caminho e na luz da hora que se escolhe para passear. Quando quero suar e me arrebentar, vou pro karatê.

Se não sabe brincar, não desce pro play.

Gostei dessa frase, chupada do blog de Raquel. Muitas vezes comparei o relacionamento findo ao fim da brincadeira no parquinho: choradeira, e "quero ficaaar!", e "não quero subir pra tomar banhoooo", escândalo e jus esperneandi.

Após três meses da separação eu já era capaz de pensar com alguma clareza novamente e escrevi um soneto de cauterização. Confortei-me com os versos de Milton: "...toda dor ainda desaparece numa esquina ou noutra emoção; e estarei, de luar no peito e fogo no interior, desregrado, entusiasmado, cabe o mundo inteiro no meu coração". Esperança. O soneto ficou assim:

Soneto de lembrar um dia
Euni - Brasília, 25 de março de 2007.

Depois de tudo, eu murmurei tristeza
E solidão, e mágoa, e amargura.
Mas eu me lembro ainda da beleza
Do nosso amor, da cândida ternura.

Lembro a doçura antiga, colorida,
Do confortável conviver diário:
Essa lembrança eu vou guardar no armário
Das coisas belas que ganhei da vida.

Eu seguirei a trilha, caminhante
Feliz do amor que a vida nos compôs;
E quando o tempo nos lembrar, depois

Daquele amor, ainda que distantes,
Nós oraremos a oração do amante
E nos verás, e eu verei nós dois.

Pra onde vão os Blogs?

Sim, pois é: depois que eu me for, a minha sombra há de ficar aqui? Quanto tempo dura um blog depois que o dono se vai?

É tentador pensar num blog como uma cápsula do tempo. Como um livro. Como as garrafas de náufragos.

Quem lerá por último os meus pensamentos, num exercício atemporal de telepatia?

Cecília


Descobri este poeminha de Cecília Meireles em plena fogueira do sétimo período de 2006 (ou inferno astral, como queira). Ajudou a por muitas coisas nas suas devidas proporções:

Canção Mínima
(Cecília Meireles)

No mistério do Sem-Fim
Equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim,
E, no jardim, um canteiro;
No canteiro, uma violeta,
E, sobre ela, o dia inteiro.

Entre o planeta e o Sem-Fim,
A asa de uma borboleta.

A Linha e o Linho

Tenho especial carinho por algumas composições de Gilberto Gil. Uma delas, A Linha e o Linho, mostra duas pessoas apoiando o crescimento mútuo dentro de um terníssimo amor que se solidifica com o tempo. Quem não quer?


A Linha e o Linho
(Gilberto Gil)

É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
bordando, ponto a ponto, nosso dia-a-dia

E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O ziguezague do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa da paixão

A sua vida, o meu caminho, nosso amor
Você a linha, e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado a casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Capítulo II: Noite

(ver primeiro o Capítulo I) Kate não tinha forças para soltar-se do meu abraço, e parecia não notar o garfo de prata, que tanto me assustara, os tons de rosa multiplicados em pequenos pontos onde o metal pressionava sua pele.

A pequena Cathy assistia calada, o medo nos olhos, àquele abraço que misturava a esse mesmo medo a dor, o desamor, o desamparo, a frustração da alma violentada, a absoluta impotência diante da força muda que deveria ser a nossa protetora e não a nossa tirana. Pobre Cathy, sua pequena dor permitir-se-ia despir através daquele pobre olhar?

A fúria que desencadeara aquele momento terrível se fora; levara consigo toda a resistência da boa Kate, e deixara uma mulher preenchida por uma profunda tristeza.

Eu continuava abraçando-a, confortando-a com minhas próprias mãos claras, a voz meiga e terna, as carícias de irmã nos cabelos sedosos e no pescoço delicado, nossas almas igualmente abraçadas no torvelinho daqueles sentimentos todos.

Os soluços diminuíam, e Kate agora também me abraçava, aquecendo-se na ternura que se irradiava.

Voltei a cabeça devagar e pisquei um olho para a querida Cathy, agora minúscula em sua camisolinha de algodão, sentada meio encolhida sobre o grande balcão de mármore. Ela sentiu-se reconfortada com o meu sorriso, e suas mãozinhas ergueram-se como sonhos no ar, seus braços um laço suave de seda, transportando doces sonhos pela pele rosada dos braços de Kate, por sua cintura, a melodiosa voz um sussurro como o de um riacho, as consoantes como pedrinhas movendo-se aos poucos com a correnteza.

A chuva cessara, deixando o ar limpo como cristal polido. As filas de lâmpadas acesas entre as árvores acendiam e brilhavam à medida que eu as percebia, refletindo-se em centenas de gotículas amarelas, no chão, nas folhas e no ar.

A chegada do velho John, com a esposa e a filha, trouxe nosso mundo de volta. O velho John era um homem bom, mas era o que era: um homem. As lágrimas das mulheres eram, para ele, tão inexplicáveis como aquele orvalho lá fora: naturais, algo para merecer tanta atenção quanto o fato de chover hoje ou amanhã. As mulheres -- Ellena e a pequena Amy -- tinham todas os mesmos olhos assustados de Cathy.

Dain entrou na cozinha, com seus passos fortes e sua impressionante vitalidade, riu de Kate e das "pequenas lamentações" da esposa, acariciou-a levemente e levou os vizinhos para o pátio já quase seco, a fogueira agora iluminando sem fumaça, as alegres risadas do acordeon elevando-se com graça no ar cintilante que refletia as primeiras estrelas.

Capítulo I: A Cozinha

O milho derramava seu doce sabor amanteigado pelas frestas da tarde e Kate convidou-nos a jantar antes da chegada dos convivas. A pequena Cathy, ainda de camisola, encontrou rapidamente a sua espiga e acomodou-se sobre a grossa prancha de madeira escura que dava continuidade ao balcão de mármore da cozinha.

Kate não estava para conversa. Criticou os modos de Cathy, que instantaneamente retraiu-se mas não largou o milho. Chamou minha atenção para o fato de que "essa forma inculta de usar a língua inglesa" era insultante na Inglaterra e que eu "não devia por o rosto dentro da panela" porque isso não era higiênico. Disse que, aliás, meus hábitos não eram muito saudáveis, já que minha toalha e a de Cathy ainda estavam, molhadas, largadas sobre a cama, e minhas calcinhas estavam expostas à execração pública, estendidas no varal no fundo do espaçoso quintal. Que tipo de mulher expunha despudoradamente sua intimidade daquela forma?

Eu quis argumentar que todo mundo estendia suas roupas nos quintais, já que queriam que elas secassem, e que eu não podia tirar o milho da panela sem olhar o que estava fazendo, mas isso só alimentou a fúria de Kate, que passou a admoestar-me, o rosto vermelho de raiva, uma mão na cintura delgada e forte, enquanto a outra descrevia arabescos de prata com o garfo no ar, a voz dançando uma coreografia cada vez mais perigosa, enquanto eu me assustava sem tirar os olhos das cintilações do garfo.

Desesperada de terror, saltei para adiante e a abracei, imobilizando o brilho da prata, e as nossas respirações se fundiram, seu coração apoiou-se no meu e Kate começou a chorar, e não sei o que ela dizia, mas mal tentava libertar-se do meu abraço de camponesa, a voz agora um fio de amargura e tristeza. Eu só conseguia dizer "nós não, Kate, nós amamos você, nós amamos você", e com cuidado trouxe sua cabeça para o meu colo, e naquele abrigo a menina saiu da prisão da mulher, e Kate derramou as lágrimas represadas de sua tristeza, lágrimas demais para seus poucos vinte anos. (continua)

Outra vida, circa 1757

Quantas vezes voltam imagens de outra vida, outra vida?

Gilberto Gil fala na "Menina do Sonho", uma fada fadada a viver, com seu corpo no nada, o instante, o espaço, o abraço real da ilusão de existir.

Durante minha infância e adolescência, eu achava que a menina que eu amava era sempre a mesma, ora habitando um corpo, ora outro. Algo como se a essência do meu ideal de namorada fosse uma personalidade que vagasse pelo mundo, e eu tinha que ter a habilidade e a sutileza necessárias para reencontrá-la a cada migração (algo parecido com os monges tibetanos buscando as pessoas que seriam as sucessivas reencarnações de Buda). Existem vidas sucessivas? Vidas paralelas?

Outro dia acordei com uma lembrança tão viva na memória que só poderia tratar-se de um evento real. Descrevo-o como posso nos posts A Cozinha e Noite, neste blog. Esqueçam a forma literária. Esses escritos datam de muitos anos, quando a prosa de Clarice, repleta de vírgulas, me encantou pela primeira vez. Apreciem o relato.