Com alarmante frequência aqueles que exercem tarefas delegadas pelo poder público no Brasil desconhecem seu verdadeiro lugar e suas responsabilidades. Os resultados são, obviamente, desastrosos, sob qualquer ângulo que se observe uma situação assim: danos ao Erário, à população, à economia, à sociedade, à infância, à educação, à saúde, à segurança...
O servidor público, via de regra, é um sujeito que ganha muito melhor que a média da população brasileira. Pode fazer greve sem ser punido ou demitido. Variações da economia não obstaculam seus seguidos aumentos salariais. Alguns têm também casa (boa), comida (boa), carro (caro), festas (de arromba) e roupa (de grife) lavada, tudo pago pelo contribuinte. Em suma, não partilham da maior parte dos motivos de stress que atormentam os não-servidores. E como é, via de regra, que os servidores públicos tratam o interesse do contribuinte, para não mencionar o tratamento dispensado ao próprio contribuinte? (esta pergunta é meramente retórica. Não se dê ao trabalho de responder.)
Um resultado dessa distorção está expresso no excelente texto de Eliane Cantanhêde, publicado em seu blog e na Folha Online, que reproduzo abaixo.
11/12/2008
O buraco negro é outro
O relatório oficial da Aeronáutica sobre o acidente entre o jato Legacy e o Boeing da Gol, que matou 154 pessoas em 29 de setembro de 2006, inocentou completamente o sistema de radares e de equipamentos do controle aéreo brasileiro. Mas condenou a operação desse sistema. "Buraco negro" nos céus brasileiros, como acusavam os controladores em autodefesa, não há. Mas "buraco negro" no trabalho das pessoas há e muito.
Pelo relatório, que também acusa os pilotos norte-americanos do Legacy de despreparo para voar num jato novo e nos céus brasileiros, o nosso sistema de tráfego aéreo é "deficiente de coordenação" e tem "escassez de pessoal". Esses são bons motivos, mas não os únicos, para explicar a verdadeira lambança dos controladores de vôo naquele dia fatídico.
Um jovem de Brasília nem sequer se deu ao trabalho de ler o plano de vôo do Legacy e passou a informação de qualquer jeito. Um maduro e tarimbado de São José dos Campos (SP) sabia que o plano de vôo previa três altitudes, mas deu de ombros e repassou uma só, como recebera de Brasília, para os pilotos. E ainda fez um "link" entre uma só e o destino final do Brasil, o aeroporto Eduardo Gomes, em Manaus. Os pilotos simplesmente trocaram o plano do papel pelo plano autorizado e foram em frente sempre a 37 mil pés. Durante bom tempo, na contramão!
Quando passaram por Brasília, onde deveriam mudar a altitude na primeira vez, não o fizeram. O controlador que deveria ver não viu. E o pior: outro controlador deveria ter mudado a freqüência de rádio, já que o Legacy mudara o "setor", do sul para o norte. Não fez. Não cumpriu sua obrigação.
Conclusão: além de não corrigirem a altitude na hora certa, os controladores também não tiveram como corrigir depois porque inviabilizaram a comunicação via rádio com a aeronave, que passou a ser um míssil perdido no ar.
Para completar, os pilotos não tinham feito o dever de casa e tiraram a atenção do vôo para fazer algo básico: calcular o peso do aparelho no aeroporto de Manaus, com base na fuselagem, nos ocupantes e no combustível. Enquanto um fazia contas no laptop, o outro digitou dois ou mais números, por mais de 20 segundos, numa "caixinha" que acomoda o transponder e o back-up de outros dados --como o de combustível.
Na tentativa de apurar o nível de combustível, eles acabaram botando o transponder em "stand-by", incapaz de detectar a vinda do Boeing em sentido contrário e, portanto, de acionar o TCAS, o sistema que alerta os pilotos do perigo, por meios visuais e sonoros, e indica a manobra evasiva necessária.
Ainda por cima, o jato viajava em regime especial, o RVSM, que permite uma distância menor entre aeronaves no ar. Em qualquer suspeita de perigo, o procedimento imediato é cancelar o RVSM e aumentar a distância para os padrões tradicionais e mais prudentes. Mas o controlador de Manaus, que "recebeu" o Legacy do Cindacta (Brasília), quando ele ultrapassou a área Nabol do mapa aeronáutico, simplesmente não fez essa recomendação.
Sem rádio, sem transponder, sem diligência, sem preparo e na contramão... bem, deu no que deu.
Com a investigação concluída, dois anos depois, inclusive com peritos norte-americanos e canadenses, todo o acidente fica unicamente nas mãos da Justiça. A palavra agora é com ela. Enquanto a gente reza para que os controladores estejam mais espertos e mais bem preparados e não haja pilotos estrangeiros voando de qualquer jeito por aí. Aqui não é a casa da mãe Joana.
Afinal, Natal, Ano Novo, férias, Carnaval, tudo está chegando. Segurança é bom e a gente gosta.
Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.E-mail: elianec@uol.com.br
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