Ou: Uma Noite na Clínica
Existem segredos nossos que até nós mesmos desconhecemos, ou preferimos evitar conhecer. Quando esses segredos parecem guardar alguma relação causal relevante com eventos importantes em nossas vidas, chega a hora de lidar com eles e, para tanto, é necessário deles tomar conhecimento.
Imbuído de toda essa retórica filosófica e convencido, pela pancadaria dos eventos, de que a hora dos meus segredos chegara (banzaiiiiiiiiii!!!!) cedi à recomendação antiga de Claudia, à pressão de seda de Ana e ao apoio de Vera (curiosa, essa força delas) e procurei um profissional desses que, não à toa, são conhecidos nos EUA pelo singelo substantivo-adjetivo "shrink", aqui "psicólogos". A idéia era conversar, me abrir, acessar meu eu interior e todo o conjunto de assertivas neoterapêuticas.
Pois sim.
Logo ao chegar à clínica, um cidadão atento destrancou o alto portão de alambrado para que eu pudesse entrar e perguntou: -O senhor vai fazer consulta ou visita?
Desligado que sou ("consulta", eu disse), nem percebi as implicações da pergunta e, candidamente, adentrei o espaçoso hall, dotado de uma decoração agradável e de muitos sofás de aparência confortável. Fui atendido simultaneamente por duas recepcionistas que poderiam muito bem estar na base do Carro de Apolo. Muito gentil, o Dia assumiu o cadastramento do meu lado socio-econômico-profissional e o controle do meu hipocampo, enquanto a Noite, igualmente gentil, cuidava dos aspectos burocráticos relativos à minha pessoa física e capturava meu sistema límbico. Disseram-me que o médico iria atrasar o meu atendimento, pois cuidava de uma internação. Eu devia ter captado essa também, mas estava distraído. Só comecei a acordar quando, após as informações de nome, endereço, telefone e nome dos pais, a Noite me perguntou:
-Nome do responsável?
Pasmei.
- Hein? Desculpe, nao entendi. O responsável por mim? (boca aberta, dedos da mão direita no peito e sobrancelhas em riste, olhando por cima dos óculos)
- Humrum. (cara de "claro, imbecil, quem tem problemas mentais aqui é você")
- O responsável sou eu!!... (cara de "tá pensando o quê?")
Ainda estupidificado, perguntei: -Existem mesmo pessoas da minha idade que chegam aqui como eu cheguei e que têm outras pessoas como responsáveis?
- Humrum. Tem sim.
Ato contínuo, quod erat demonstrandum, um garoto de, digamos, uns 26 anos, caucasiano, de camiseta e shorts bonitos, cabelo bem cortado mas com uma cor de pele sem brilho que me fez lembrar os tanques de formol da faculdade de Medicina, parou ao meu lado, olhou-me fixamente de forma amigável e me estendeu a mão. Nem pensei duas vezes: apertei firmemente a mão tão simpática: -Oi, tudo bem? - Tudo bem.
Instruído pelas Apolíneas a aguardar na sala de espera, levei o que sobrou do meu neocórtex para o hall e passei a olhar tudo com mais atenção. Um casal sentava no sofá do fundo: a mulher parecia apreensiva, mas o homem que fumava e conversava com ela estava definitivamente em algum outro lugar. Uma senhora solitária parecia envolta em uma aura de ferro. Outros dois viam TV em uma sala separada, e pareciam bem confortáveis em seus pijamas.
Com uma sensação remota de koyaaniskatsi, resolvi tomar um chá pra ver se achava o meu planeta. O sujeito simpático brotou novamente do meu lado e disse: - "Ponha 70% de café e 30% de chá. Não cabe no copinho pequeno". Inferi que "70%" equivalem a uns 70 ml. Evitando contrariar meu novo amigo, fiz o que ele disse; e não é que ficou bom mesmo?
O sujeito eclipsou-se de novo e fui tomar o chafé na sala de TV, vendo o noticiário. Meus dois colegas de sala me olharam como a um verme e me esqueceram. Um jovem esguio e bem vestido, que parecia ser um profissional da clínica, veio e cumprimentou efusivamente os dois, ignorando-me totalmente.
Outro rapaz em shorts e camiseta sentou-se ao computador no canto da sala e começou a digitar um e-mail, enquanto limpava a garganta. E limpava com mais força. E mais forte. E ainda mais forte. Num crescendo, aquilo que começara com um simples "hum-hum!" transformou-se em um rugido respeitável, digno do melhor barítono das savanas quenianas ou das florestas canadenses e, quando eu me preparava para largar o escudo e salvar a pele em desabalada fuga, surgiu um cidadão de camiseta e músculos que perguntou docemente ao rapaz algo como "o que há, Fulano?" -- ao que o jovem levantou-se e saiu conversando placidamente com os músculos sobre sei lá o quê.
Foi quando percebi que havia telas de proteção em todos os vidros e janelas, o PC estava firmemente preso ao piso e a TV à parede, e notei a altura impressionante do alambrado que cercava a clínica. E eu tinha estacionado do lado de dentro!! Como explicar à dona do carro que o automóvel dela tinha ficado na terapia intensiva?
Estudando as possíveis rotas de fuga, notei que uma moça da clínica conversava no hall com um rapaz tatuado e forte. Ela dizia: -"Eu nunca pego o telefone dos homens; prefiro dar o meu telefone a eles". E o cara: -"É, eu também". E a moça: -"É que, se ele tiver interesse, vai ligar; se não tiver interesse, não vai ligar, entende"? E o cara: - "É". Devo confessar que a lógica do raciocínio me escapou totalmente, prejudicando de vez a minha auto-avaliação psicológica.
Lembrei que, há muito tempo atrás, fui a uma clínica de pneumologia para consultar um médico sobre uma tosse que me incomodava. Ao examinar-me, o médico me perguntara: -"Trouxe suas coisas"? E eu: - "Hein, como assim, minhas coisas"? E ele: - "É, você apresenta um quadro grave de bronquite asmática, e terá que ficar internado por quinze dias. Telefone para informar ao seu trabalho e ligue para casa para que alguém lhe traga suas roupas e outras coisas". E lá fiquei mesmo, vendo o povo morrer durante a noite e aturando a enfermeira acender a lâmpada de 300 kilowatts na nossa cara a cada três minutos pra enfiar uma bruta seringa em alguém.
Essa lembrança me deu o recado final. Pensei: - "Putz, se esse médico perceber só um pouco, vou ficar morando aqui". Saquei a chave do carro, esforçando-me para comportar-me como uma pessoa normal. Fechando as asas que se abriram dos meus calcanhares, caminhei compassadamente por entre rostos picassianos até o estacionamento, cliquei no alarme e liguei o carro. Surpreendentemente, o cara da Gestapo abriu a ponte levadiça sem qualquer pergunta e me deixou sair.
Em pouquíssimos segundos o motor 1.0 fez 80 Km/h e, antes que eu pudesse piscar os olhos, estava buscando abrigo num Schhoppinngg Scenntterr do Lago Norte, com todas as implicações psicossociais que isso possa conter. Caminhei por entre as pessoas, mesas, lojas; entrei pra olhar brinquedos; pedi sushi e sashimi com missoshiro num lugar chamado Haru (Primavera) (eu devia ter notado isso também) e sentei-me na praça a céu aberto com a Folha de São Paulo na mão; fiz quatro ou cinco telefonemas de trabalho e outras tantas chamadas pessoais, com todas as demais implicações. Tudo parecia normal. Devidamente assegurado de que ninguém tinha denunciado a minha fuga, respirei.
Na hora não pareceu engraçado.
Existem segredos nossos que até nós mesmos desconhecemos, ou preferimos evitar conhecer. Quando esses segredos parecem guardar alguma relação causal relevante com eventos importantes em nossas vidas, chega a hora de lidar com eles e, para tanto, é necessário deles tomar conhecimento.
Imbuído de toda essa retórica filosófica e convencido, pela pancadaria dos eventos, de que a hora dos meus segredos chegara (banzaiiiiiiiiii!!!!) cedi à recomendação antiga de Claudia, à pressão de seda de Ana e ao apoio de Vera (curiosa, essa força delas) e procurei um profissional desses que, não à toa, são conhecidos nos EUA pelo singelo substantivo-adjetivo "shrink", aqui "psicólogos". A idéia era conversar, me abrir, acessar meu eu interior e todo o conjunto de assertivas neoterapêuticas.
Pois sim.
Logo ao chegar à clínica, um cidadão atento destrancou o alto portão de alambrado para que eu pudesse entrar e perguntou: -O senhor vai fazer consulta ou visita?
Desligado que sou ("consulta", eu disse), nem percebi as implicações da pergunta e, candidamente, adentrei o espaçoso hall, dotado de uma decoração agradável e de muitos sofás de aparência confortável. Fui atendido simultaneamente por duas recepcionistas que poderiam muito bem estar na base do Carro de Apolo. Muito gentil, o Dia assumiu o cadastramento do meu lado socio-econômico-profissional e o controle do meu hipocampo, enquanto a Noite, igualmente gentil, cuidava dos aspectos burocráticos relativos à minha pessoa física e capturava meu sistema límbico. Disseram-me que o médico iria atrasar o meu atendimento, pois cuidava de uma internação. Eu devia ter captado essa também, mas estava distraído. Só comecei a acordar quando, após as informações de nome, endereço, telefone e nome dos pais, a Noite me perguntou:
-Nome do responsável?
Pasmei.
- Hein? Desculpe, nao entendi. O responsável por mim? (boca aberta, dedos da mão direita no peito e sobrancelhas em riste, olhando por cima dos óculos)
- Humrum. (cara de "claro, imbecil, quem tem problemas mentais aqui é você")
- O responsável sou eu!!... (cara de "tá pensando o quê?")
Ainda estupidificado, perguntei: -Existem mesmo pessoas da minha idade que chegam aqui como eu cheguei e que têm outras pessoas como responsáveis?
- Humrum. Tem sim.
Ato contínuo, quod erat demonstrandum, um garoto de, digamos, uns 26 anos, caucasiano, de camiseta e shorts bonitos, cabelo bem cortado mas com uma cor de pele sem brilho que me fez lembrar os tanques de formol da faculdade de Medicina, parou ao meu lado, olhou-me fixamente de forma amigável e me estendeu a mão. Nem pensei duas vezes: apertei firmemente a mão tão simpática: -Oi, tudo bem? - Tudo bem.
Instruído pelas Apolíneas a aguardar na sala de espera, levei o que sobrou do meu neocórtex para o hall e passei a olhar tudo com mais atenção. Um casal sentava no sofá do fundo: a mulher parecia apreensiva, mas o homem que fumava e conversava com ela estava definitivamente em algum outro lugar. Uma senhora solitária parecia envolta em uma aura de ferro. Outros dois viam TV em uma sala separada, e pareciam bem confortáveis em seus pijamas.
Com uma sensação remota de koyaaniskatsi, resolvi tomar um chá pra ver se achava o meu planeta. O sujeito simpático brotou novamente do meu lado e disse: - "Ponha 70% de café e 30% de chá. Não cabe no copinho pequeno". Inferi que "70%" equivalem a uns 70 ml. Evitando contrariar meu novo amigo, fiz o que ele disse; e não é que ficou bom mesmo?
O sujeito eclipsou-se de novo e fui tomar o chafé na sala de TV, vendo o noticiário. Meus dois colegas de sala me olharam como a um verme e me esqueceram. Um jovem esguio e bem vestido, que parecia ser um profissional da clínica, veio e cumprimentou efusivamente os dois, ignorando-me totalmente.
Outro rapaz em shorts e camiseta sentou-se ao computador no canto da sala e começou a digitar um e-mail, enquanto limpava a garganta. E limpava com mais força. E mais forte. E ainda mais forte. Num crescendo, aquilo que começara com um simples "hum-hum!" transformou-se em um rugido respeitável, digno do melhor barítono das savanas quenianas ou das florestas canadenses e, quando eu me preparava para largar o escudo e salvar a pele em desabalada fuga, surgiu um cidadão de camiseta e músculos que perguntou docemente ao rapaz algo como "o que há, Fulano?" -- ao que o jovem levantou-se e saiu conversando placidamente com os músculos sobre sei lá o quê.
Foi quando percebi que havia telas de proteção em todos os vidros e janelas, o PC estava firmemente preso ao piso e a TV à parede, e notei a altura impressionante do alambrado que cercava a clínica. E eu tinha estacionado do lado de dentro!! Como explicar à dona do carro que o automóvel dela tinha ficado na terapia intensiva?
Estudando as possíveis rotas de fuga, notei que uma moça da clínica conversava no hall com um rapaz tatuado e forte. Ela dizia: -"Eu nunca pego o telefone dos homens; prefiro dar o meu telefone a eles". E o cara: -"É, eu também". E a moça: -"É que, se ele tiver interesse, vai ligar; se não tiver interesse, não vai ligar, entende"? E o cara: - "É". Devo confessar que a lógica do raciocínio me escapou totalmente, prejudicando de vez a minha auto-avaliação psicológica.
Lembrei que, há muito tempo atrás, fui a uma clínica de pneumologia para consultar um médico sobre uma tosse que me incomodava. Ao examinar-me, o médico me perguntara: -"Trouxe suas coisas"? E eu: - "Hein, como assim, minhas coisas"? E ele: - "É, você apresenta um quadro grave de bronquite asmática, e terá que ficar internado por quinze dias. Telefone para informar ao seu trabalho e ligue para casa para que alguém lhe traga suas roupas e outras coisas". E lá fiquei mesmo, vendo o povo morrer durante a noite e aturando a enfermeira acender a lâmpada de 300 kilowatts na nossa cara a cada três minutos pra enfiar uma bruta seringa em alguém.
Essa lembrança me deu o recado final. Pensei: - "Putz, se esse médico perceber só um pouco, vou ficar morando aqui". Saquei a chave do carro, esforçando-me para comportar-me como uma pessoa normal. Fechando as asas que se abriram dos meus calcanhares, caminhei compassadamente por entre rostos picassianos até o estacionamento, cliquei no alarme e liguei o carro. Surpreendentemente, o cara da Gestapo abriu a ponte levadiça sem qualquer pergunta e me deixou sair.
Em pouquíssimos segundos o motor 1.0 fez 80 Km/h e, antes que eu pudesse piscar os olhos, estava buscando abrigo num Schhoppinngg Scenntterr do Lago Norte, com todas as implicações psicossociais que isso possa conter. Caminhei por entre as pessoas, mesas, lojas; entrei pra olhar brinquedos; pedi sushi e sashimi com missoshiro num lugar chamado Haru (Primavera) (eu devia ter notado isso também) e sentei-me na praça a céu aberto com a Folha de São Paulo na mão; fiz quatro ou cinco telefonemas de trabalho e outras tantas chamadas pessoais, com todas as demais implicações. Tudo parecia normal. Devidamente assegurado de que ninguém tinha denunciado a minha fuga, respirei.
Na hora não pareceu engraçado.
2 comentários:
KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK... estou rindo até agoraaaaaaaaaa!!!! :D
Claudinha
Muito interessante este seu blog, e por incrivel que pareça também fiz um parecido com o seu, da uma olhada, podemos compartilhar.
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