Quase ninguém mais utiliza recursos de coesão por substituição e referência – pelo menos não no texto do dia-a-dia, nas conversas e,
muito menos, nos veículos mais populares de disseminação da cultura. Lendo sobre o assunto, lembrei-me da letra de “Acontece”, de Cartola:
“Se
ainda eu pudesse fingir que te amo
Ah,
se eu pudesse!
Mas
não quero, não devo fazê-lo
Isso
não acontece”.
Como é do conhecimento público, Cartola era um sambista
pobre, morador da favela da Mangueira, que só estudou até o 4º ano primário. E
que, não obstante, inseria elementos de coesão textual por referência e substituição em seus
sambas. Cartola nasceu em 1908 e morreu em 1980. Compôs canções inesquecíveis a
partir de 1930, gravando a maioria em disco entre 1965 e 1980.
Por qualquer razão, observei que há uma
referência importante nessas datas: elas abrangem o período dos presidentes
militares.
Eu nasci em 1961 e lembro que era norma, durante toda a
minha infância, esperar e entrar no ônibus em fila, cedendo o lugar aos mais
velhos e às mulheres, fossem essas mais velhas ou não. Nessa época ainda acreditava-se
que quem fosse capaz de fazer alguma coisa, tinha a obrigação de fazê-la; e,
assim, além do quesito gentileza, as crianças trabalhavam quando não estavam
estudando ou brincando -- e ninguém era criança depois dos 14. Pelo que sei não havia escola
para todos, mas havia trabalho remunerado para quem o quisesse e existia o
emprego de “contínuo” para quem não tivesse maiores qualificações, como era o
meu caso aos 14 anos e o caso de Cartola aos 50. As pessoas vestiam suas melhores
roupas para ir “ao comércio” e usavam uniformes limpos e bem passados para
frequentar as aulas.
Tudo isso desapareceu subitamente quando eu já estava no
colégio (atual ensino médio), em 1976, durante o período mais repressor do
regime militar, em plena vigência do Ato Institucional nº 5, o qual, dentre
outras coisas, deu aos generais poderes absolutos (absolutos) sobre cada
cidadão brasileiro, revogou a Constituição, fechou o Legislativo e proibiu a
manifestação sobre qualquer assunto de natureza política.
Nesse período, como todos sabem, era comum jornalistas cometerem suicídio nas delegacias de polícia. Livros foram banidos, bancas de revistas foram
explodidas, jornais e livrarias foram fechados; músicas, peças de teatro e a
expressão do pensamento foram censuradas ou proibidas, enquanto escritores,
intelectuais, cantores e compositores de música popular foram violentamente
impedidos de produzir. Um evento que, guardadas as proporções, remete ao
incêndio da biblioteca de Alexandria. No caso do Brasil a perda terá sido muito menor; ainda assim, uma perda irreparável.
(Abre parênteses: haverá quem defenda os anos de chumbo, reafirmando
que seríamos “outra Cuba”, que teria havido mais mortes sem a intervenção das
FFAA, etc. Para outros palpites do gênero, ver os comentários dos leitores na
Folha de SP quando se publica qualquer menção à palavra “Ditadura” no jornal.
Fecha parênteses, porque este texto não trata de política.)
Em resumo: a ditadura promoveu a destruição de um volume
expressivo do registro cultural brasileiro entre 1964 e 1980 e inibiu violentamente
a produção de cultura durante vinte e cinco anos. Pode-se concluir que um evento
de tal magnitude certamente terá influenciado o padrão cultural do brasileiro
comum.
O número de escolas aumentou bastante, proporcionalmente
inclusive, em relação ao que existia em 1976. Entretanto, a língua portuguesa atualmente
falada e escrita numa pluralidade de meios no Brasil é um amálgama de gramática rudimentar e vocabulário restrito, improvisada
e afastada da forma culta: um pidgin da língua utilizada por Cartola, que
cursou até o quarto ano primário no século passado. Surgiu o “funk carioca”, ruído
de acasalamento que nem é funk e nem é carioca e que, pra piorar, acabou
tombado como patrimônio cultural do Rio, antiga capital cultural do país. Importou-se
o gerundismo, jargões e palavras de ordem que tentam disfarçar o analfabetismo
funcional e a indigência intelectual. Vê-se e ouve-se a dilapidação da língua
em outdoors de universidades, em placas de sinalização, nos pronunciamentos de
autoridades, na música, no teleatendimento e na produção literária.
É notória a destruição causada pelos exércitos, quando
controlados por extremistas políticos ou por seitas religiosas, ao tomarem de
assalto sociedades e povos. Por vingança, por omissão e, geralmente, na impossibilidade de reconhecerem cultura que não
seja a sua própria, destroem vezes seguidas o patrimônio intelectual e cultural
da Humanidade, retardando continuamente a ascensão de homens e mulheres a um
patamar que se possa chamar, sem ressalvas, de civilizado.
(Abre parênteses: tenho amigos que defendem e apregoam o ideário do
extremismo de direita ou do extremismo de esquerda, fechando os olhos a tudo
que não se alinhe às suas respectivas doutrinas. Busco, por vezes, abrir-lhes
frestas que lhes permitam mirar-se num espelho ou ver o outro lado do muro, não
raro desencadeando reações apaixonadas que já me obrigaram a batalhar com fé em
defesa da amizade que existe para além dos credos. É que amigos são joias raras.
Por um amigo chego a arriscar a amizade. Fecha parênteses.)
A língua é dinâmica, atualiza-se constantemente para
adaptar-se a cada nova realidade. Mas somente em uma sociedade culta
é capaz de manter sua beleza, objetividade e leveza enquanto evolui.
Leveza da qual discordava Olavo Bilac, entretanto sem deixar de apoiar meu texto:
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
Citando Fernando Pessoa, Caetano Veloso clama por novas palavras, cores e nomes:
Entre a energia da renovação e a engenharia da língua, tenhamos a ambas!, por que não?
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