sábado, 7 de julho de 2012

A Vontade Segundo Zaratustra


Em um trecho de "Assim Falou Zaratustra" (Friedrich W. Nietzche, 1885), um homem expõe o desgaste de suas crenças e de suas virtudes no decurso das batalhas contra suas necessidades, que ele chama de "inimigos". E conclui que somente sua Vontade mantém vivos os espíritos de todos esses tijolos do seu Ser; e impedem sua desagregação:
"Assassinastes as visões e as mais queridas maravilhas da minha juventude! Tirastes-me os meus companheiros, os espíritos bem-aventurados. Em sua memória deponho esta coroa e esta maldição.
Esta maldição contra vós, meus inimigos! Não abreviastes o que eu tinha de eterno, como um som que se extingue na noite fria? Mal chegara até mim como um brilhar de olhos divinos – um momento fugido!
Assim, em boa hora, falou, noutro tempo, a minha pureza: “Divinos deverão ser, para mim, todos os seres.”
Então vós me assaltastes com imundos avantesmas. Ai de mim, para onde fugiu aquela boa hora?
“Todos os dias, para mim, deverão ser sagrados” – assim falou, noutro tempo, a sabedoria da minha juventude: em verdade, a linguagem de uma alegre sabedoria. Mas então, ó inimigos, roubastes minhas noites e as mudastes em insone angústia. Ai de mim, para onde fugiu aquela alegre sabedoria?
Noutro tempo, anelei por felizes presságios: então, pusestes no meu caminho uma monstruosa e repelente coruja. Ai de mim, para onde fugiu o meu anelo?
Noutro tempo, jurei abandonar toda a repugnância; então, transformastes em pústulas a minha vizinhança e o meu próximo. Ah, para onde fugiu, então, o mais nobre dos meus juramentos?
Como cego percorri, noutro tempo, caminhos felizes; então, atirastes imundície no caminho do cego e, agora, causa-lhe repugnância o velho atalho.
E quando realizei o que me era mais difícil e festejava as vitórias das minhas superações: então, fizeste os que me amavam gritar que nunca eu os magoara tanto. 
Em verdade, foi sempre este o vosso modo de proceder: amargastes-me o meu melhor mel e o labor de minhas melhores abelhas.
Em busca da minha caridade, mandastes sempre os mais insolentes mendigos; em torno de minha compaixão, aglomerastes sempre os despudorados incorrigíveis. Assim feristes a minha virtude em sua fé.
E, se eu oferecia em sacrifício o que tinha de mais sagrado, logo a vossa “devoção” lhe acrescentava suas mais gordas oferendas: de modo que o que eu tinha de mais sagrado sufocava na fumaça da vossa gordura.
E, noutro tempo, eu quis dançar como ainda não dancei nunca: quis dançar para além de todos os céus. Então, aliciastes o meu cantor preferido.
E, então, ele entoou uma tétrica e horripilante nênia, buzinando, ai de mim, nos meus ouvidos como lúgubre trompa!
Oh, cantor assassino, instrumento da malvadez, e mais inocente que todos! Já estava eu preparado para a melhor das danças: com o teu canto, então, assassinaste o meu enlevo!Somente dançando, eu sei falar em imagens das coisas mais elevadas – e, assim, ficou-me silenciada nos membros a minha mais elevada imagem!
Silenciada e irredenta, ficou-me a mais elevada esperança! E morreram-me todas as visões e consolações da minha juventude!
Como pude suportar? Como sobrevivi a tais feridas e as superei? Como, desses túmulos, ressuscitou a minha alma?
Sim, qualquer coisa invulnerável e que não pode tumular-se há em mim, qualquer coisa que fende rochas: chama-se a minha vontade. Silenciosa e inalterada, procede através dos anos.
Quer caminhar, no seu passo, com meus pés, a minha vontade; inabalável, é seu ânimo, e invulnerável.
Invulnerável eu sou somente no meu calcanhar. Ali continuas vivendo e sempre igual a ti mesma, ó pacientíssima! Continuas abrindo caminho por entre todos os túmulos!
Em ti ainda vive o que ficou irredento da minha juventude; e, como vida e juventude, estás aqui sentada, esperançosa, nos amarelados escombros dos túmulos.
Sim, ainda és, para mim, a destruidora de todos os túmulos; salve, ó minha vontade! E só há ressurreição onde há túmulos.
Assim falou Zaratustra".

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