quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Reacionário



A moda é chamar de "reaça" tudo o que não atenda à exigência de pensamento único. Sobretudo na falta de encontrar um “ismo” pra chamar de seu, as pessoas que têm o termo na ponta da língua simplesmente se consideram “progressistas”, já que o Grande Ismo, a ideologia do comunismo – que chamava, justamente, de “ideologia” tudo o que não fosse comunista – saiu de moda. É suficiente, agora, ser “de esquerda”.
A tática é simples: na falta de argumento sustentável basta chamar de "reaça" aquilo que não for “progressista” e aderente ao pensamento único do Partido no poder; e, com toda a sorte de contradições, associar ao "reacionário" tudo aquilo que for ruim: fascismo, racismo, ditadura, homofobia.
Reacionários, entretanto, são o exato oposto de tudo isso. Os reacionários são aqueles que, ao ver um problema social, desconfiam da solução “revolucionária” de praxe (aumentar o poder do Estado para que ele corrija / proíba / financie) e, imaginando como as coisas reagem, se posicionam contra a concentração de poder nas mãos de uns poucos bem-iluminados que, supostamente, podem “corrigir” o problema. Reacionários são os caras que desconfiam de políticos.
Por isso, os reacionários eram considerados os inimigos das “revoluções” – esta palavra que soa tão agradável a ouvidos desacostumados com a História, que não percebem que toda “Revolução” contra tudo o que está aí resultou no poder absoluto nas mãos de um tirano que simbolizava o pensamento único: a Revolução Francesa decai em Napoleão Bonaparte depois do Terror, a Revolução Russa faz o poder do tsar parecer minúsculo perto de Lenin, Stalin, Kruschev, Andropov e afins, a Revolução Chinesa põe no poder Mao Tsé-tung, que mata sozinho, por métodos que vão do fuzilamento à fome, mais de 70 milhões de pessoas; a Revolução Iraniana, idolatrada por Michel Foucault (que era gay), transforma o ocidentalizado Irã no totalitarismo fechadíssimo de Rūḥollāh Khomeini que enforca gays em praça pública. Todos estes tiranos odiavam os “reacionários” que avisaram: “não faça revolução, vai dar m…”
Não por outra razão, os “reacionários” eram cantados como alvo de ódio pelos hinos dos dois maiores totalitarismos da história mundial, a Internacional Socialista e o hino nazista, a Canção de Horst-Wessel (“Kameraden, die Rotfront und Reaktion erschossen”). “Reacionário” era o epíteto dado aos inimigos dos revolucionários, que queriam o poder total (a marca da era moderna) para “corrigir” a sociedade. Reacionário foi quem se opôs a Lenin, a Mao, a Hitler, a Mussolini, a Khomeini, a Fidel, a Milošević, a Saddam, a Kadafi, a Mugabe, a Kim Il-sung – foram os refratários ao reformismo social pela tirania estatal.
Tem como se ofender com alguém nos chamando de “reacionários” por isso? Tem como não notar a contradição brutal em chamar alguém de reacionário e fascista ao mesmo tempo, quando um era inimigo mortal do outro a ponto de ser cantado como alvo de ódio até no hino nacional e internacional?
Reacionários são os caras que desconfiam dos corações bem intencionados, das cabeças com pouca leitura e dos ânimos exaltadíssimos dos revolucionários por saberem que essas coisas não têm bom resultado. São os chatos que dizem que “protesto” sem foco termina invariavelmente em black bloc matando inocente na rua.
Já o revolucionário acha que os expurgos stalinistas e as mortes de fome em fazendas coletivizadas foram apenas uma festinha que fugiu do controle – ou, caso seja na coletivização de fazendas do Zimbábue pelo socialista Robert Mugabe, ainda posta foto de africanos morrendo de fome dizendo que é isso que o capitalismo, o livre mercado e a propriedade privada fazem.
O reacionário descobre como as coisas reagem porque pensa como um dos homens mais inteligentes da humanidade, G. K. Chesterton: em seu ensaio The Superstition of School, Chesterton explica que não é esperado que os homens “velhos” sejam reacionários, mas que, com a experiência, saibam que as coisas reagem e como reagem – ao contrário do furor revolucionário, que crê religiosamente que o mundo será moldado passivamente com as suas boas intenções. Se um homem atira num coelho, num velho ou num rei, deve esperar reações dessa ação.
É por isso que David Hume, o cético que é maior expoente do empirismo, lembra que as doutrinas e tradições são conhecimento, e não precisamos atirar nós mesmos em um coelho, um velho ou um rei para descobrir as conseqüências. É por isso que conservadores olham para o passado: para não precisar seguir caminhos que os antigos já sabiam que dariam errado no futuro. É por isso que os conservadores conservam tradições e lêem livros antigos, de Platão a Montaigne, de Shakespeare a Solzhenitsyn – o revolucionário, por outro lado, acredita que suas boas intenções bastam para “consertar” o mundo, sem esperar nenhuma reação da dura realidade.
G. K. Chesterton nos ensina que o homem que acumula a sabedoria das reações não perde ideais, como os jovens costumam crer que os velhos perderam seus sonhos. Pelo contrário: o socialismo ideal, o capitalismo ideal ou qualquer Utopia, mantida pura no mundo das idéias, hagiograficamente virginal ao contato com a realidade, continua sendo sempre ideal. O problema é o real: como é um regime de “reforma agrária” com fazendas e fábricas coletivas na realidade, como é a vida livre da “burguesia” em um mundo real em que cada “burguês” desaparecido é mais um cadáver em uma pilha monstruosa.
Ser reacionário é saber como as coisas reagem. É ter um saber que prevê reações antes mesmo de elas ocorrerem. É o homem que vê conseqüências imprevistas onde o afobado vê motivo para exaltação e ânimo em marcha acelerada. É o homem que, como Prometeu no mito, o primeiro reacionário, vê o mal antes mesmo de ele ocorrer. É, enfim, o homem que não nasceu ontem, que não é seduzido por discursos maviosos de quem quer melhorar o mundo sob mandos da concentração de poder e da proibição do que não gostam e do subsídio ao que gostam. Como se ofender em ser reacionário?
Vários dos grandes reacionários brasileiros, como o filósofo Mário Ferreira dos Santos ou o crítico literário Otto Maria Carpeaux, autor da maior História da Literatura do mundo, morreram vociferando contra o golpe de 64 e seu obscurantismo.
Vejamos uma frase famosa de Che Guevara, ícone estampado nas camisetas de marmanjos que se sentem “de esquerda” com síndrome de Peter Pan do DCE:
“Não posso ser amigo de quem não compartilha das mesmas ideias que eu”.
Agora as palavras de um reacionário, o nobre Erik von Kuehnelt-Leddihn, homem de conhecimento enciclopédico capaz de ler em mais de 20 línguas e, como bom reacionário austríaco, um fugitivo do nazismo, em seu O Credo do Reacionário:
"Como um reacionário honesto, eu naturalmente rejeito o Nazismo, Comunismo, Fascismo e todas as ideologias relacionadas que são, de fato, um reductio ad absurdum da chamada democracia e do “povo no poder”. Eu rejeito os pressupostos absurdos do governo da maioria, do parlamento hocus-pocus, o falso liberalismo materialista da Escola de Manchester e o falso conservadorismo dos grandes banqueiros e industrialistas. Eu abomino o centralismo e a uniformidade da vida em rebanho, o espírito estúpido racista, o capitalismo privado, bem como o capitalismo de estado (socialismo) que contribuíram para a ruína gradual da nossa civilização nos últimos dois séculos".
O verdadeiro reacionário desses dias é um rebelde contra os pressupostos prevalecentes e um “radical” que vai até as raízes.
Tem como se ofender em ser chamado de “reacionário”? Perceber essa platificação de pensamento é ser um “reaça”, já que a ditadura de pensamento único não permite, por definição, pensamentos discordantes. Trata-se de uma estratégia para definir limites do que é permitido pensar.
É a uniformidade da vida em rebanho, o coletivismo bovinóide, o cult of the sameness tão combatido pelo reacionário Kuehnelt-Leddihn.
Assim como apóiam ditaduras militares e acusam os reacionários de serem saudosistas da ditadura; serem modistas e afirmarem que estão denunciando uma moda; serem sedizentes “críticos” e abraçarem irrefletidamente qualquer -ismo do momento; imputarem pensamentos nojentos a seus adversários e admirarem quem os leva a cabo, o anti-reaça da última moda também adora defender a “diversidade”, ao mesmo tempo em que odeia toda forma de “desigualdade”, nunca percebendo a contradição brutal no núcleo de sua crença fanática.
Os reacionários não seguem um bloco de pensamento fechado, como crêem e evangelizadoramente querem fazer crer os seguidores do pensamento único hegemônico. Kuehnelt-Leddihn, Chesterton, Xavier Zubiri, Miriam Joseph, Mário Ferreira dos Santos, Olavo de Carvalho são pensadores católicos. O grosso dos “reaças” americanos, por óbvio, são protestantes. Alguns, judeus (essa turma que foi vítima do nazismo e que a esquerda odeia pelo mesmo motivo, mas jura que o nacional-socialismo nada tem a ver com socialismo): Dennis Prager, Ben Shapiro, Mark Levin, Michael Medved. Outros são muçulmanos, como René Guénon, Frithjof Schuon ou Hossein Nasr. Alguns são ateus, como S. E. Cupp, P. J. O’Rourke, H. L. Mencken, Jillian Becker.
Ser “reaça” é defender o individualismo e a responsabilidade individual perante o coletivo – por óbvio, portanto, que eles discordem bastante entre si. Ronald Reagan era a favor de anistia para imigrantes ilegais. William F. Buclkey Jr. era a favor da legalização das drogas (como o são todos os “libertários”). Barry Goldwater era a favor da descriminalização do aborto. Ser “reaça” é defender a liberdade de pensamento individual – por exemplo, alguém não defender o casamento gay porque acredita que o casamento é instituição de formação da sociedade, e acredita que não se deve tratar como “casamento” uma união que não é formação de família.
Já ser de esquerda, sim, é pensar em bloco: se você é de esquerda, obrigatoriamente tem de ter as mesmas opiniões do coletivo sobre aborto, casamento gay, drogas etc do grupo. Discordar em um ponto é “preconceito obscurantista”. Sempre que alguém apresenta argumentos contra o pensamento único dos “anti-reaças”, os rebanhistas imediatamente os tacham de pessoas poderosas e malévolas querendo defender os seus “privilégios.
É o moralismo capenga do progressismo: define-se limites para o que pode ser pensado, através de conceitos pedestres: associa-se fascismo à “extrema-direita” (termo que os fascistas nunca usaram para se auto-definirem), diz-se que então os progressistas são opositores do fascismo e da direita, ao mesmo tempo em que também odeiam judeus e Israel (bar mitzvah é considerado “reaça” demais em um dos textos), e detestam o liberalismo e o capitalismo, dizendo que quanto mais liberal, mais é “reaça” e de direita, crendo que extrema-direita é a hiper-privatização, ao mesmo tempo em que a vida dissociada do Estado é associada com o fascismo Tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato – e se você aponta qualquer contradição nisso, você é que não sabe brincar com esses conceitos chulé, você que é fanático obscurantista, você que não conhece a complexa realidade da mentalidade esquerdista – tão bem descrita por Lionel Trilling em seu clássico The LIberal Imagination.
Assim se cria a conceitofobia, o medo primevo e brutal de conceitos mais sólidos do que o lugar-comum da linguagem banal do dia-a-dia, conceitos que vão além dos limites do que é permitido pensar e do que é anátema, pecaminoso, sujo, proibido.
É a “fé metástica” de que nos fala Eric Voegelin: a fé que odeia a realidade, tendo mais amor pela opinião (filodoxia) do que amor ao saber (filosofia) e que quer reformar toda a estrutura da realidade – para tal, não pode senão repudiar a realidade com medo dela, achando-se por isso “crítico” do que é simplesmente verdadeiro.

Conclusão

Ser “reaça” é apenas saber das coisas, e não querer moldar os outros conforme a sua imagem e semelhança – o que fazem desde Lenin com suas fazendas coletivas a Kim Jong-un exigindo o mesmo corte de cabelo para toda a Coréia do Norte (ou Pol-Pot, mandando ser morto por crocodilos quem fosse alfabetizado ou usasse óculos). Ser reaça é ser contra aqueles regimes onde você pode sair fuzilando quem discorda de você.
Mas eu não me incomodaria se uma pessoa “de esquerda” me xingasse de alguma coisa séria. Me chamar de idiota, bobo, ingênuo, cego, me mandar à merda ou mandar me foder, com medo de virar pó ao me ouvir – ou, como o modismo do pensamento único agora exige, de coxinha, de fascista, de olavete.
A esquerda chama todo mundo de quem discorda de “racista”, de “homofóbico”, de “fascista” justamente porque sabe que os xingados odeiam racismo, homofobia, fascismo e que possivelmente se calarão quando tiverem sua opinião associada a estas coisas das quais têm nojo mortal. Se fossem de fato racistas, homofóbicos ou fascistas as pessoas simplesmente diriam “Sim” e continuariam na mesma. Não é o que a esquerda planeja.
Dói um pouco ser xingado de fascista, de saudosista da ditadura, de branco, de rico, de homofóbico, de católico, de racista, de nazista e de “fascista” por gente que quer tudo dentro do Estado, tudo para o Estado, bem ao contrário de você.
Mas, acredite: nada dói mais do que ser “xingado” de “reacionário” por pessoas que querem nos ofender, mas nos elogiam sem perceber.

Flavio Morgenstern - excerto (com intervenções reacionárias) do texto "Parem de achar que 'reacionário' é ofensa".

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Alea jacta erat


Nos tempos de Fernando Henrique Cardoso a bandeira da Bahia dividia, com o Pavilhão Nacional, o espaço no cabeçalho do site oficial da República, numa deferência muito especial e exclusiva concedida ao senador Antônio Carlos Magalhães, poderoso aliado do presidente. Corria solta a anedota na qual o diabo evitava a morte do ex-governador baiano, porquanto, se tal ocorresse, seria este quem, daí por diante, iria mandar em todos os círculos infernais. Confiante, ACM enroscou-se na linha dada por FHC; e sua menor perda foi o cabeçalho.

Nesta quarta-feira, dia 2 de dezembro de 2015, Dilma Rousseff aplicou em Eduardo Cunha uma rasteira que terá superado aquela que FHC passou em ACM. O agora politicamente defunto presidente da Câmara nunca há de esquecer que uma amadora lhe aplicou um golpe de mestre, ao livrar-se da lei de responsabilidade fiscal (única grande cartada do impeachment) dentro da casa dele, por duas vezes seguidas.

Promessas descumpridas são característica dos nossos governos, mas, excluindo-se a possibilidade de que tudo não passe de um plano dentro de um plano dentro de um plano, o fato de Cunha acreditar num compromisso com Dilma foi o cúmulo da ingenuidade. 

Há os que afirmem que Cunha está apenas colhendo o que plantou, e que a Polícia Federal, o Ministério Público, o TCU e o STJ só agora estão agindo  para desbaratar quadrilhas conhecidas há séculos porque o governo atual lhes deu liberdade para agir. O fato é que a PF e o MP só estão levando a cabo essa devassa intitulada Operação Lava-Jato porque numa bela manhã encontraram, por acaso, a ponta do fio de um crime tributário num posto de gasolina em Brasília e começaram a puxá-lo, quando ninguém, nem o governo, suspeitava que isso fosse atingir os principais esquemas de enriquecimento ilícito em operação, desde sempre, no país. Esquemas, aliás, que o PT prometia combater e aos quais -- como se vê todos os dias nos jornais -- acabou por aderir maciçamente. Não fosse a estratégia de "vazamentos" na imprensa, os órgãos investigativos e fiscalizadores estariam manietados como sempre.


A cartada de mestre do governo foi chamada, ontem, de "ajuste fiscal"; mas, na prática, é apenas o ajuste da lei para que nela caiba o que seria, em qualquer país com real separação de poderes, um crime de responsabilidade. Levantou-se que, há alguns anos, o presidente norte-americano também se viu na necessidade de modificar o limite de endividamento do governo, sendo isso, portanto, igualmente aceitável no democrático Brasil. Falácia. Nos EUA, Obama pediu permissão antecipada para mover a margem em uma economia onde cem bilhões de dólares são troco; aqui, Dilma usou -- mal -- as nossas suadas reservas sem perguntar nada a ninguém, levando o país à recessão; e conseguiu que o déficit bilionário e histórico decorrente fosse aprovado pelo Congresso. Isso tem um nome, e não é "ajuste fiscal", tampouco "governo do povo, pelo povo e para o povo". O governo une-se a criminosos e, em troca de liberdade de ação, lhes dará refúgio contra a cadeia, criando impunidade por meio de sucessivas e oportunas mudanças das normas legais. A presidência da câmara é um preço baixo para uma das quadrilhas (a do PMDB, que é governo) pagar.

O prêmio de consolação será a aprovação da lei de repatriação da poupança suíça, que lavará as economias de todos os criminosos e livrará da prisão todas as quadrilhas. Essa também será uma jogada magistral, mas aplicar golpe contra a sociedade é lugar-comum e nem tem graça, pois a gente não sabe jogar.