Eu amo ouvir música. Cresci ouvindo minha mãe cantar pela casa, meu pai cantando no quintal, tios tocando Dilermando Reis e Baden Powell em seus DiGiorgio com cheiro de pinho e aço, tias tocando acordeons repletos de teclas misteriosas. Meus filhos cantam e cantarolam o tempo todo. Se me descuidar, eu canto.
Boa parte da minha educação musical veio com a coleção de música erudita que papai comprou semanalmente à Abril Cultural quando eu tinha uns 6, 7 anos. De cara gostei de Handel. No meu rádio, ouvia Carpenters, EltonJohn, The Jacksons, Nazareth e todos os Beatles, juntos ou solo, sem entender uma única palavra -- mas as melodias eram encantadoras. Tinha um primo rico que comprava discos do Queen, Yes, Black Sabbath, Led Zeppelin, Uriah Heep, Deep Purple, Alice Cooper, T.Rex, Slade, Pink Floyd, David Bowie, Kiss e todas as vertentes do rock em 1970.
Frequentei as quartas-feiras do prédio da Reitoria da UFPb, onde os músicos da OSPB apresentavam-se em quartetos de sopro, quintetos de cordas, cameratas e sinfonias estupendas juntamente com o coral da Universidade. Fui barata de auditório e de coxia quando Caetano Veloso, Gilberto Gil, Arrigo Barnabé e Nara Leão faziam shows de três dias no Theatro Santa Roza e no Cine Tambaú.
No grupo de flautas do SESC aprendi a gostar de Vivaldi, Paganini e Bach, e descobri Mozart.
Amigos, amigas, grandes amores e até inimigos contribuíram para que eu passasse a ouvir Andreas Vollenweider, Chick Corea, Pat Metheny, Tom Jobim, Milton Nascimento, Joe Satriani, Sade, Legião Urbana, Ultraje a Rigor, Engenheiros do Hawaii, Capital Inicial, Ed Mota, Paralamas, Cidade Negra, Madredeus.
Mas tudo isso é pra dizer que no fim-de-semana passado ouvi, como quem ouve o povo da Atlântida ou da Lemúria, a Cor do Som!, e fiquei a semana inteira cantarolando sem parar algo que eu nunca, mas nunca na vida toda consegui entender. Sequer acreditava que a letra que eu estava cantando fosse a correta. Procurei na Internet, e, para minha surpresa, não é que eu estava cantando quase certo, quando pensava estar fazendo uma paródia? Vejam isto:
ZanzibarComposição: Armandinho/Fausto Nilo
No azul de Jezebel
No céu de Calcutá
Feliz constelação
Reluz no corpo dela
Ai tricolor colar
Ás de maracatu
No azul de Zanzibar
Ali meu coração
Zumbiu no gozo dela
Ai mina aperta a minha mão
Alá meu “only you”
No azul da estrela
Aliás bazar da coisa azul
Meu “only you”
É muito mais que o azul de Zanzibar
Paracuru
O azul da estrela
O azul da estrela
Essa canção tem um ritmo genial e uma melodia viral, e viria a ser a mãe do que ficou conhecido depois como "axé music". Tenho quase certeza de que, ao compô-la, Armandinho e Fausto Nilo estavam em algum tipo de transe induzido pela flora baiana. Somente décadas depois de ter ouvido pela primeira vez essa canção, somente hoje!, compreendi qual o processo mental necessário para acompanhar o sentido, puramente emocional, de uma letra assim: primeiro é preciso dormir pouco e mal durante uma semana, trabalhando duro e sem ganhar nada; em seguida, é preciso entrar no estado de letargia imposto pelas súbitas mudanças de umidade e temperatura dos primeiros dias da primavera de Brasília. Aí sim: ao ler a letra, sempre esquecendo a frase anterior, você guarda apenas o conteúdo emocional de cada verso, o que lhe dá o sentido da frase que você está lendo. Repetindo esse processo em todos os versos, você "pega" a carga emocional do texto, a qual só de modo figurado tem a ver com a letra.
Eis o mistério do axé: a letra não é letra, é pura carga sensorial que passa pela amígdala direto para o sistema límbico, sem nenhuma intervenção do neocórtex.